Há um modo artificial como nos apresentamos em sociedade. Em regra muito diverso daquele que assumimos em privado. É da natureza humana, dizem. E acredito nisso: um gato – que é o mais parecido com os humanos que conheço – sendo por vezes dúplice, resulta atrevido ou pomposo com os donos tal como com os da sua raça.
Suponho que essa distância entre público e privado, que é de todos os povos e classes, embora se note muito mais à medida que se sobe na escala social e cultural, tem refracções na vida política. Uma delas é o modo como os que não estão na vida política vêem os que para lá entram, no exacto momento em para lá entram. Assumindo logo um ar desconfiado, carregado de preconceitos. É isso que explica a tradicional má imagem que os “políticos” têm.
Os políticos são no fundo cidadãos como todos nós que, voluntariamente, pela sua permanente exposição pública, deixaram de ter vida privada. O seu artificialismo é uma defesa e ao mesmo tempo o alvo de todas as desconfianças. E nesse aspecto estamos hoje, em termos de mentalidade política, como no interior brasileiro dos anos 30.
A cena foi registada por Jorge Amado e reproduzida por Josélia Aguiar na sua excelente biografia do escritor baiano: “Um velho senhor do engenho octogenário e quase cego perguntou aos interlocutores num bar: quanto ganha um presidente da república? Vinte contos por mês coronel. Ao que o velho disse com voz cansada: É muito… é muito… tem quem faça por menos. E repetiu: tem quem faça por menos…”.
Ora, e voltando à reflexão inicial, a impossibilidade de assumirmos em público a nossa dimensão privada, por vezes tão negativa quanto empática, se queixam também aqueles que não sendo políticos partilham com estes a mesma exposição pública (hoje diríamos mediática). Só que enquanto nos políticos o desencontro é fatal, entre as restantes personalidades públicas há quem se salve…
Leia-se o desabafo de Leitão de Barros, afogado em exposição pública no mesmíssimo Brasil de Jorge Amado, tal como as suas netas em biografia recente, não menos excelente, o revelam: “quero ser estúpido, naturalmente estúpido, quando me apetece, sem ter o rótulo oficial, nem responsabilidades nacionais (…) quero ir ao Brasil sem levar Portugal ao colo.”
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.