“O mercado dirigido para a tokenização poderia, pelo menos teoricamente, ser tão alto quanto o valor total dos ativos globais, chegando a centenas dos triliões de dólares. Mas precisamos mesmo que esteja tudo assente em blockchain?” – John Wu, Ava Labs

Nem sempre é tarefa fácil identificar qual o momento a partir do qual uma determinada inovação se torna verdadeiramente transformadora dos nossos hábitos, ao transformar um dado padrão de comportamento de consumo tradicional ou uma tecnologia e indústria previamente estabelecida em algo rapidamente obsoleto.

Algumas invenções ou saltos tecnológicos são muito evidentes, outros são mais silenciosos, e nem sempre se explicam facilmente ao público em geral. Por exemplo, era fácil perceber que o correio eletrónico teria um impacte demolidor no comportamento tradicional das comunicações por correio, ou que a inovação na qualidade das fotografias digitais e nos telemóveis iria também mudar por completo a indústria dos conteúdos e da fotografia. Ou como, ao que tudo indica, a indústria automóvel irá cada vez mais avançar para motores elétricos, ou tecnologias similares, com pegada ambiental o mais neutral possível.

Por outro lado, algumas inovações que igualmente transformadoras, foram menos percetíveis, tendo percorrido o seu caminho até a sua presença se tornar inevitável e tomar conta das rotinas e das vidas das pessoas. Foi assim com a internet, por exemplo. Foi assim com as redes sociais, numa fase posterior.

Tal como poderá estar a acontecer com a tecnologia blockchain, uma expressão complexa que diz pouco ainda ao público em geral, que é muito associada apenas a criptomoedas (ex: bitcoin), mas que, tecnologicamente, é muito mais do que isso. Aliás, a blockchain poderá ser a protagonista de uma revolução silenciosa.

O que é exatamente a blockchain? Como funciona e porque é disruptiva?

A blockchain é uma tecnologia que funciona como uma espécie de protocolo, baseado na confiança entre pares. Ou seja, é uma arquitetura em rede P2P (peer-to-peer) que distribui e divide informação de forma descentralizada por uma série de participantes na mesma. É uma tecnologia que funciona como um livro-razão contabilístico que regista informações, transações e gestão de ativos, mas que é completamente descentralizado e livre de qualquer autoridade central.

Isto significa que os dados sobre as transações são geridos diretamente entre as partes, retirando o fator de intermediação da transação e tornando-a mais eficiente, mais transparente e mais segura, uma vez que é descentralizada e criptografada digitalmente.

Os ativos sobre os quais os protocolos de transação blockchain funcionam podem ser tangíveis (uma casa, um carro ou moeda), ou intangíveis (propriedade intelectual, marca, etc.). No fundo, praticamente qualquer item de valor pode ser controlado e comercializado numa rede blockchain, o que reduz os riscos e os custos de todas as partes envolvidas.

Como funciona? Dito de uma forma simplificada, dentro de um ecossistema blockchain, quando uma transação é solicitada através de um meio digital (ex: computador ou smartphone), esta operação é emitida para uma rede ou comunidade digital P2P (peer-to-peer) constituída por computadores que estão ligados em rede e que constituem os “nós” da comunidade. Esta comunidade P2P, estes “nós”, utilizam algoritmos para validar quer a transação solicitada, quer a identidade do utilizador que a solicita, garantindo a autenticidade da mesma e do utilizador.

A transação, após verificação transparente, pode ficar associada a um contrato digital – o qual poderá envolver também moeda digital (ex: uma cripto como a bitcoin) – que depois gera dentro do sistema um “bloco” de dados que é adicionado ao livro de razão contabilístico do utilizador que solicitou essa mesma transação.

Este bloco de dados é imutável, inalterável e permanente, e é adicionado ao histórico de blocos de dados em cadeia da rede, levando à letra para a expressão inglesa adicionado à blockchain. Este último passo completa a transação através de um processo mais rápido, mais descentralizado e sem custos de intermediação, realizado entre a comunidade de pares, ou seja, P2P.

A tecnologia blockchain (ou de blocos de dados em cadeia) é disruptiva no processo de digitalização da economia, porque traz uma alteração profunda na gestão da proteção e transparência da informação e dados que é essencial para as transações – onde a velocidade e precisão da mesma são essenciais.

A blockchain é, pois, ideal para isso, porque fornece informações imediatas, compartilhadas e completamente transparentes, armazenadas em um livro-razão imutável que só pode ser acedido por membros autorizados da rede. Uma rede blockchain pode controlar pedidos, pagamentos, contas e produção, entre muitas outras situações, e como todos os participantes veem as mesmas informações, todos os detalhes de uma transação estão disponíveis, o que não só aumenta a confiança e a transparência, como cria mais oportunidades.

A tokenização de ativos como catalisador de valor

Existe um enorme potencial ligado a vários pontos de atuação da tecnologia blockchain, que está sobretudo ligada ao conceito da tokenização dos ativos. A tokenização refere-se à criação de tokens, que não são mais do que partes de código alocadas num blockchain, com dados sobre ativos e passivos subjacentes, que podem incluir – entre outros – atributos, histórico de transações ou propriedade. Estes tokens digitais viabilizam a negociação e transferência de titularidade e títulos de valor diretamente, bem como através do modelo de livro de razão digital.

De forma resumida, pode dizer-se que existem dois tipos de classes de ativos passíveis de ser tokenizados:

i) Ativos alternativos ou não-financeiros, que tradicionalmente representam ativos menos líquidos, como imóveis, arte e outros bens colecionáveis. E também podem ser ativos intangíveis, como créditos de carbono ou propriedade intelectual. Alguns contratos financeiros que não são negociados facilmente, como faturas comerciais, empréstimos privados ou hipotecas, podem também caber nesta classificação;

ii) Ativos financeiros líquidos: referem-se à criação de tokens que representam valor financeiro, como dinheiro, ações, títulos, commodities e fundos de investimento.

Ou seja, em termos teóricos, quase tudo com valor monetário pode ser tokenizado. De acordo com a maior parte das análises sobre o sector, as melhores perspetivas de tokenização via blockchain estão associadas à criação de moeda digital gerida por bancos centrais (Central Bank Digital Currency), os ativos financeiros privados, especialmente os ilíquidos como arte e colecionáveis e, com o tempo, ativos no campo do jogo, ou gamming.

Adoção em massa a uma tecnologia com pouca visibilidade no ‘mass market’

O potencial de tokenização via blockchain tem sido considerado transformador nos últimos anos, mas ainda não estamos no ponto da adoção em massa desta tecnologia. Ao contrário dos automóveis, ou de inovações mais recentes como o ChatGPT ou até o Metaverso, a blockchain é uma tecnologia de infraestrutura de back-end, ou seja, sem uma ligação frontal ao consumidor proeminente, o que dificulta a perceção de como poderá ser inovadora.

Mas existe hoje uma forte convicção, por parte dos observadores mais atentos, de que a próxima década poderá ser de enorme evolução, em termos de aproveitamento do potencial associado à tecnologia blockchain, podendo este ser convertido em milhares de milhões de utilizadores e triliões de dólares em valor.

De acordo com uma análise recente do Citgroup, “Citi GPS Março 2023”, o nível de sucesso está associado ao patamar mil milhões de utilizadores. Este crescimento deverá ser impulsionado pela adoção de moedas digitais pelos grandes bancos centrais (CBDC) em todo o mundo, assim como pelos ativos tokenizados em jogos e pagamentos baseados em blockchain nas redes sociais. Ainda de acordo com o mesmo estudo, até 2030, um valor de até cinco triliões de dólares em moedas CBDC deverão estar a circular nas principais economias, sendo que metade poderão estar vinculadas à tecnologia de blockchain.

A tokenização de ativos financeiros e de trabalho real poderá vir a impulsionar o avanço da blockchain, com a expectativa de que a tokenização cresça num fator de 80 vezes nos mercados privados e atinja cerca de quatro triliões de dólares em valor, também até 2030.

‘Bottoms’ up’: legislação e regulação são pontos chave

A tecnologia será, sem dúvida, uma barreira a ultrapassar. A blockchain promete algo que, por um lado, é uma substituição de um sistema atual em funcionamento, e, por outro, aponta a novos modelos operacionais. Contudo, a blockchain ainda precisa ganhar escala, em termos de dimensão de transações, de ter fortes garantias de segurança e de privacidade, certificação da identidade no ecossistema de rede, e de assegurar uma boa experiência ao utilizador.

No entanto, a ocorrer a evolução natural da internet para o que já se chama de web3, esta também vai atrair um maior escrutínio por parte dos reguladores e decisores de políticas públicas. Ou seja, para ser adotada com sucesso no mainstream, o enquadramento legal também precisa ser alterado para permitir a constituição de smart contracts legais, que irão fornecer um novo conjunto de soluções para o comércio e finanças a nível global.

Da mesma forma que também terá de surgir um maior enquadramento regulatório, que consiga gerir o equilíbrio da escalabilidade da solução, sem prejuízo dos ganhos inerentes à inovação. A mudança é silenciosa e pode ser ainda pouco visível, mas está em curso. Governos, empresas e instituições estão atualmente a proceder a testes e provas de conceito, pelo que a blockchain promete marcar de forma irreversível não só o curso da economia, mas também os hábitos e rotinas da sociedade.