“Maior é o perigo onde maior é o medo” – Caio Salústio

Vem-me à mente esta crónica nestes dias inverneiros de nevoeiro cerradíssimo como os das últimas semanas, mesmo em tempo de outono. Tenho-me deparado na estrada com situações incrédulas de perigo que até me espanto como, em certas vezes, não se dão mais acidentes e incidentes. Ou quando se dão, não sejam piores do que são…

Nestes dias, vezes houve que – mesmo com luzes de nevoeiro – mal se via “um palmo à frente”. E, acrescente-se, com a hora de inverno os dias escurecem bem mais cedo. Em ambas as situações, quantos veículos se viam sem quaisquer faróis acesos? Não eram um, nem dois, nem três…! Por um mero acaso, milagre quiçá, eram vistos. Mas impercetíveis. Só mesmo em cima do acontecimento. O que se passa (ou não) na cabeça dessa gente?

Ainda havia, entre os condutores prudentes e amigos, quem lhes desse sinais de luzes. Como alerta de segurança. Porém, a ajuda não era bem-vinda. Ou “não devemos avisar as pessoas do perigo que correm, salvo depois de este ter passado” (Voltaire)? E porquê era desavinda? A resposta era inequívoca: ou simplesmente ignoravam ou rudemente gesticulavam com o dedo do meio, sentindo-se feridos na correção fraterna.

Coitadinhos, pensamos tantos de nós, considerando que tais indivíduos só podem ser masoquistas e amantes eternos do perigo. São sujeitos do seu umbigo, que no seu mundinho, esquecem-se que não estão sós. Que a estrada não é só deles. Que é também assim, demasiadamente desse modo, que não estão no seu perfeito juízo e que é assim que se criam prejuízos. Sendo o maior deles vidas atropeladas e/ou vidas perdidas…

“O maior perigo na vida é que podemos tomar demasiadas precauções” (Alfred Adler), mesmo com uma condução extrema e exageradamente defensiva a ponto de se tornar aborrecidamente perigosa. Nem oito nem oitenta! Somos – o povo, genericamente – de extremos e de contrastes. Não há dúvida.

Contudo, se pensarmos bem, quantas situações correntes – noite e dia, do dia à noite – temos em que o perigo espreita por haver fiéis seguidores e espoletadores do mesmo? Muitas! São incontáveis e infindáveis. E não somente na via rodoviária – entre outras situações constantes de perigo (como ignorância/desleixo completa aos sinais de cedência e de STOP, entre outros) –, mas em várias vias e raios da nossa vida, porque “o perigo brilha como o sol aos olhos do bravo” (Eurípedes). Porquê e para quê tanto perigo? Não ouvis? Eu repito, mais contundente e mais alto: tanto perigo, porquê e para quê? Uma pergunta certamente sem resposta, no sentido do que filosofava Nietzsche: “só se ouvem as perguntas às quais se sabe dar resposta”.

Perante tudo isto, lembro-me e adapto aqui o simbolismo da encruzilhada. Também o perigo, o que ele tem e o que dele advém, como encruzilhada. O seu cruzamento de caminhos fá-la estar no epicentro, para quem se situa nela. Na balança da encruzilhada temos os dois pólos da pilha: o positivo e o negativo.

No positivo, constatou-se a encruzilhada nos seus lugares de eleição e de revelação, onde – muitas vezes estremecidos por espíritos – se construíram pirâmides, obeliscos, ermidas, pedras votivas, etc., para oferendas. Como sinal da necessidade do ser humano se reconciliar, em si mesmo com o divino e nesses lugares de passagem pelo mundo. Seja na América, na Sibéria ou em África, cuja encruzilhada assume o enfoque de uma “coisa sagrada”, ainda com as tradições milenares de animais sacrificados. Passagem essa que nos sugere e ingere à transição entre mundos: “de uma vida para outra, da vida para a morte”.

No menos positivo, a encruzilhada é também onde “as pessoas podem, preservadas pelo anonimato, desembaraçar-se das forças residuais, negativas, inaproveitáveis” e “perigosas para a comunidade”. Deste modo, a encruzilhada é “o encontro com o destino”. Já que “cada ser humano é em si mesmo uma encruzilhada onde se cruzam e se digladiam os diversos aspetos da sua pessoa”. Portanto – qualquer que seja a nação, cultura e religião –, a encruzilhada é “a chegada perante o desconhecido e, como a reação humana mais fundamental perante o desconhecido é o medo, o primeiro aspeto do símbolo é a inquietação” (cf. J. Chevalier e A. Gheerbrant).

Daí eu referir-me aos entronizados nos perigos, e seus desencadeadores, como encruzilhados. Não obstante, importa realçar que – apesar dos perigos e dos perigosos –, a encruzilhada é e será sempre, também, “o lugar de encontro com ‘os outros’, quer exteriores quer interiores” (idem).

O sério problema é quando, tantas vezes, a encruzilhada se torna emboscada. Na escolha deliberada e sibilada do perigo infrator, pelejado infamemente por alguns dos piores perigos existentes no cerne humano. Tais como a calúnia, a inveja, a vitimização, a mentira, a discórdia, a impaciência, a brusquidão, a pseudo-superioridade, a cobardia, a sátira, a ingratidão, o maltrato, etc.. Tudo sementes e frutos podres preferidos das malditas línguas maledicentes e dos atos maldosos. Todos eles abundam – e nos afundam –, sem tréguas, esta terra de alucinante desumanização, onde vezes sem fim nos querem rebaixar de diversas formas. Ou tirar-nos o chão, ou atirar-nos para o chão, ou querer-nos a rastejar no chão, ou espezinhar-nos como se não houvesse mais chão…!

Os perigos não olham a meios para atingir os seus baldados fins. E estes chãos estão por aí, nos vários condutos e redutos da esfera humana. Que, no seu apetite pelo perigo, é fera! Mais fatal e feroz, casquina e ininterruptamente, que um animal designadamente selvagem…

Perigo após perigo, tal qual andarilho devoto do seu trilho, eis o medo: outro dos piores perigos da pessoa. E o maior entre eles, para Pearl Buck, “é o de subestimarmos os nossos inimigos”. É um pau afiado, cortante, de dois gumes. Que são tanto quem se entrega e rende ao medo, quanto quem do medo é estratega e seu provocador. Sem dó nem dor! Pois “o medo do perigo é mil vezes pior do que o perigo real” (Daniel Defoe), sabendo que ele “desaparece quando ousamos enfrentá-lo” (Chateaubriand).

Não devemos ter medo nem da vida nem da morte. Elas são duas linhas paralelas dum mesmo carril, encarrilado, que um dia se conhecerão irmãmente na tangência e contingência da sua essência. Com subliminar vidência e preliminar confidência. Um dia, e para sempre, se cruzarão na imortalidade. E aí, jamais se vislumbrará qualquer medo. Qualquer perigo. “Não temais”!