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Joana Marques Vidal: “Será muito problemático combater corrupção sem autonomia financeira do DCIAP”

Joana Marques Vidal defende uma cultura cívica de integridade numa estratégia nacional contra a corrupção. E deixa avisos sobre as alterações que estão em curso ao estatuto do Ministério Público.
Cristina Bernardo
20 Julho 2019, 09h00

Numa altura em que os novos estatutos do Ministério Público (MP) estão em discussão no Parlamento, a antiga procuradora-geral da República (PGR), de 2012 a 2018, deixa alertas quanto à autonomia financeira da PGR, sem o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP). Avisos que já levaram o PS a apresentar nova proposta para garantir que aquela autonomia é extensível ao DCIAP. Numa conversa à margem da conferência da SEDES que teve lugar no passado dia 1 de julho, com o JE como media partner, Joana Marques Vidal fala sobre o sistema burocrático que, no seu mandato, teve de ultrapassar para ter acesso a recursos para as investigações criminais. Atualmente magistrada do MP, Joana Marques Vidal defende ainda uma cultura cívica de integridade numa estratégia nacional contra a corrupção. E recusa que os poderes da PGR sejam esvaziados com a nomeação de cargos superiores pelo Conselho Superior do Ministério Público.

Há condições técnicas para implementar uma autonomia administrativa e financeira total no Ministério Público? É executável no imediato?
As decisões têm de ter estruturas que as coloquem e é claro que teria de se organizar uma estrutura, mais forte do que atualmente existe, para concretizar essa autonomia. Neste momento, por exemplo, o orçamento e pagamento dos vencimentos dos juízes já está todo no Conselho Superior da Magistratura. Na minha opinião, a autonomia do MP deve abranger o orçamento e pagamento do vencimento de todos os magistrados e as despesas de funcionamento e de manutenção da actividade do MP de todos os departamentos. Não só da PGR como das Procuradorias-Gerais Distritais e outros departamentos centrais com a exceção da atividade de funcionamento das comarcas, porque essas estão sujeitas a um regime de gestão partilhada que está prevista na lei de organização do sistema judiciário. Obviamente que é preciso uma estrutura na Procuradoria-Geral da República, suficientemente formada, desde logo com técnicos, que saiba fazer orçamentos e que tenha capacidade administrativa para concretizar esta autonomia

Só a PGR abrange cerca de duas centenas de elementos, incluindo funcionários e magistrados. Mas no MP estamos a falar de cerca de 1.600 magistrados …
Mas quando falamos em processamento de salários é uma questão mecânica. O fundamental é que a distribuição das rubricas do próprio orçamento seja efectuada de acordo com aquilo que são os objectivos a atingir pelo MP. Estou a falar de objetivos organizativos para proporcionar que o MP exerça as competências que tem na lei. Estamos a falar, nomeadamente, de perícias. Por exemplo, atualmente nas comarcas, por vezes acontece que os magistrados dos DIAP das comarcas precisam de fazer uma busca. Não têm carro, o carro é da comarca. E para o terem, têm de pedir ao administrador para reservar o carro para determinado dia e depois as regras obrigam a dizer quantos quilómetros é que são e para onde é vão. O MP numa investigação terminal não pode anunciar ao administrador o sítio da busca a realizar. Há questões próprias do funcionamento do MP que não podem estar dependentes daquilo que são as exigências formais e burocráticas, dependentes de outra instituição que não seja o próprio MP.

Nos últimos anos, mesmo não estando consagrado na lei, sentiu nos seus mandatos que houve alguns problemas de financiamento da PGR?
O que eu senti não era propriamente na PGR, porque sempre conseguíamos, com muito diálogo com o Ministério da Justiça, muita abertura por parte da senhora ministra da Justiça. E depois perante o senhor ministro das Finanças, porque isto é sempre muito complicado para todos os organismos públicos. Sempre que necessitámos, conseguimos resolver os problemas. Simplesmente a própria estrutura burocrática e de formalidade exige um conjunto de requisitos, que se não estivessem dependentes do Ministério da Justiça – e do Ministério das Finanças -, havia um diálogo direto sem necessidade de intermediação e serviços do próprio ministério. Senti problemas a este nível. Acha que tem sentido num Tribunal da Relação, um procurador-geral distrital ter de perguntar ao sr. presidente da Relação se existe, ou não, orçamento para poder deslocar-se aos Açores para fazer uma reunião de trabalho? Isto não tem sentido. Até em termos daquilo que é a célebre autonomia e separação entre as duas magistraturas que faz parte do nosso modelo constitucional e que, de certa forma, é posta em causa na prática.

Há problemas de financiamento?
Muitas vezes há, mas ultrapassam-se pelo relacionamento pessoal. Mas há depois todo um sistema burocrático. Por exemplo, há investigações – e, neste momento, não é só no DCIAP, os DIAP distritais também têm essas investigações – que exigem recurso a peritos que só existe um em Portugal, e que necessita de ser pago para além da tabela prevista. Tudo isto demora muito mais tempo. Não é por querem bloquear a nossa acção. É porque demora naturalmente tempo para explicação para conseguirmos um perito. Os Departamentos de Investigação e Ação Penal, fora de Lisboa e até o de Lisboa, queixavam-se de não ter até há pouco tempo um digitalizador e uma fotocopiadora a cores. Isso era uma competência do Ministério da Justiça. Um dia perguntei ao sr. secretário da PGR se havia orçamento e rubrica para pagar quatro digitalizadores dos bons, porque para trabalhar em termos informáticos os processos têm grande dimensão. Foi ver e disse que havia. Então sugeri para pôr uma etiqueta ‘pertence à PGR’, mas em vez de estar aqui está lá.

Não é contraditório que o PS queira que o combate à corrupção seja uma prioridade
e depois não garantir, na sua proposta de alteração aos estatutos do MP, a autonomia do DCIAP [entretanto foi aprovada uma nova alteração proposta pelo PS que prevê orçamento próprio da PGR, inscrito nos encargos gerais do Estado]?
Como magistrada tenho de defender aquilo que eu acho e não faço comentários sobre propostas políticas. Falo daquilo que defendo. E o que defendo é que é muito importante promover e desenvolver uma cultura cívica de integridade no âmbito de uma estratégia nacional contra a corrupção. Pois ainda subsiste uma tolerância perante determinado tipo de comportamentos e práticas que muitas vezes, não sendo crime, não quer dizer que não sejam ética e deontologicamente censuráveis. É necessário promover uma estratégia nacional contra a corrupção. Não só a estruturação de um conjunto de objetivos e ações nas áreas de investigação criminal, mas também num plano que integre políticas para fomentar a cultura cívica da integridade, políticas de reforço da transparência das contas públicas que fomentem a responsabilidade, legislação de combate à corrupção e ao branqueamento de capitais, e de tudo o que diz respeito a declarações de incompatibilidade e a um rigoroso regime contra o conflito de interesses nas diversas instituições, e o reforço das entidades de supervisão. Tudo isto tem de fazer parte da estratégia nacional para a corrupção.

E como articula tudo isso que defende com o debate sobre os estatutos do Ministério Público?
O debate sobre o estatuto do MP é importante não só relativamente à composição do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) – que não é o órgão máximo, faz parte da PGR que é o órgão superior – e às competências do próprio Conselho, como também quanto à questão da autonomia financeira. Uma das propostas [a do PS] vem dizer que a autonomia da PGR é integrada pelo assegurar do orçamento de parte da Procuradoria-Geral, desligando desse orçamento os departamentos centrais de investigação e ação penal. Significa que se não faz parte do orçamento da PGR, faz parte do orçamento que é gerido pelo Ministério da Justiça. E isso, a verificar-se, pode pôr em causa o acesso a recursos, designadamente de perícias e de investigação que são essenciais. Pode pôr em causa as investigações criminais.

Mas garante-se que o combate à corrupção seja uma prioridade sem garantir a autonomia financeira do DCIAP?
É essencial para o MP ter autonomia financeira. O DCIAP é um departamento fundamental que tem de estar dependente daquilo que é o orçamento da PGR como autonomia financeira. Será muito problemático o combate efectivo à corrupção sem essa autonomia financeira, principalmente num departamento central como o DCIAP.

Disse recentemente que se a proposta do PSD para alteração ao Estatuto do MP, fosse levada à letra da lei estariam a retirar o poder ao PGR de propor a nomeação dos cargos dirigentes dos departamentos de investigação criminal, incluindo do DCIAP . A sua visão é a de que o PGR seria transformado, finalmente, na “Rainha de Inglaterra”?
Defendo que o procurador-geral da República é o responsável pelo funcionamento e actividade de toda a hierarquia do MP e dos diversos órgãos de hierarquia. Um cargo de direção da hierarquia do MP não pode depender da iniciativa de um órgão plural, cuja competência é a avaliação de mérito, o poder disciplinar e a gestão de quadros (colocação de magistrados mediante regras e não a iniciativa de escolha). Não tem outras competência e não é o responsável pela direção da atividade funcional e hierárquica do Ministério Público. É preciso um equilíbrio entre um outro órgão que tem determinado tipo de competências dentro de uma determinada estrutura e as competências de outros elementos dessa estrutura.

E atribuir também ao CSMP a competência de proposta de nomeação dos cargos dirigentes esvaziava os poderes do PGR?
Sim. De outra forma será a tal invasão, por isso, é que esvazia os poderes do PGR. Porque punha o CSMP com outras competências que são do PGR. Qualquer proposta que altere este equilíbrio de poderes e confunda as competências de certa forma põe em causa um modelo que é um modelo de equilíbrio de poderes.

Se considera má a proposta do PSD [que entretanto alterou, nesta terça-feira, 2 de julho, a nomeação de cargos superiores do MP pelo CSMP para uma nomeação deste Conselho precedido de concurso], quer dizer que discorda da eleição de Amadeu Guerra para a Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa (PGDL)?
Não discordo nada. A lei permite isso [consensualizar um nome para as Procuradorias-Gerais Distritais e encontrar um equilíbrio entre o nome preferido do líder do Ministério Público e a sensibilidade da maioria do órgão de gestão daquela magistratura]. Não tem nada a ver com pessoas concretas. Eu defendo modelos.

Mas o nome de Amadeu Guerra não era um dos três nomes propostos pela procuradora-geral Lucília Gago. que foram chumbados. Foi proposto, em alternativa, por um grupo de procuradores e de representantes do poder político que fazem parte do CSMP…
Isso também aconteceu com o Dr. Pinto Nogueira no tempo do Dr. Souto Moura [Alberto Pinto Nogueira foi eleito em 2006 procurador-geral distrital do Porto com mais votos que os três magistrados propostos pelo então procurador- geral da República, Souto Moura]. O que eu defendo é uma coerência do sistema. Os modelos podem sempre propiciar mais ou menos aquilo que nós defendemos. Defendo que o procurador-geral da República deve exercer as suas responsabilidades pelo exercício das suas funções. E estas passam por dirigir a atividade do MP e responder por ela. Se lhe tira a responsabilidade que deve ter na escolha das pessoas certas, esvazia essas funções…. Agora há outro modelo que não me repugna nada que é essa designação de cargos dirigentes ser por concurso. O que acho completamente incoerente é esta designação ser iniciativa do Conselho.

Disse há dias que “o Estado está capturado” por redes de corrupção e compadrio. Tem dados concretos que sustentem esse alerta?
Basta olhar para os processos que têm vindo a lume. Não disse nada de novo que não tivessem já ouvido. Já foi dito 500 vezes por muita gente. Aliás o senhor Presidente da República falou sobre o mesmo, o senhor general Eanes também, muita gente fala sobre aquilo que é o sistema de corrupção em Portugal. A análise que eu faço decorre dos dados que estão em cima da mesa.

Artigo publicado na edição nº 1996, de 5 de julho, do Jornal Económico

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