Quando, em 1997, Zbigniew Brzezinski, antigo Conselheiro Nacional de Segurança do presidente Jimmy Carter, escreveu na sua obra de referência (O Grande Tabuleiro de Xadrez) o que deveriam fazer os Estados Unidos para controlar o mundo, prescreveu um programa de ação geopolítica para os EUA que inspirou a ala neoconservadora do establishment político norte-americano, e tem influenciado de modo determinante a política externa norte-americana no pós-guerra fria.

Não será de estranhar o surgimento ainda nesse ano do Project for the New American Century (PNAC), um think tank fundado por William Christol e Robert Kagan, onde se advogava ser o século XXI o século americano, onde o domínio militar dos EUA não só protegeria a segurança nacional e os interesses nacionais dos EUA, mas também estabeleceria uma Pax Americana global. Defendia ainda o PNAC que “a liderança americana é, ao mesmo tempo, boa para a América e para o mundo”.

De entre as muitas ideias avançadas por Brzezinski, pela sua atualidade, uma deve merecer a nossa particular atenção. Dizia ele que o cenário mais perigoso para o projeto hegemónico norte-americano seria uma coligação anti hegemónica constituída pela China, Rússia e Irão. Adiantando que “uma coligação que alie a Rússia à China e ao Irão só pode desenvolver-se se os Estados Unidos forem suficientemente míopes para antagonizarem simultaneamente a China e o Irão.”

Apesar do conselho avisado de Brzezinski, foi exatamente isso que aconteceu. A arrogância das sucessivas Administrações norte-americanas conseguiu alienar os seus adversários ao ponto de se coligarem contra Washington e pugnarem por uma ordem multipolar que desafia o projeto da primazia norte-americana. Não faltaram oportunidades para Washington aproximar Moscovo e Teerão do Ocidente, estupidamente desperdiçadas.

Muito se poderia escrever sobre a alienação da Rússia pelos EUA, desde o alargamento da NATO, apesar das garantias que foram dadas a Mikhail Gorbachev de que a Aliança não se expandiria para leste, à rejeição categórica da ajuda ocidental à União soviética em 1991, que impossibilitou que se produzisse na Rússia um efeito psicológico e político galvanizador semelhante ao do Plano Marshall para a Europa Ocidental no pós II Guerra Mundial, quando Moscovo procurava desesperadamente aproximar-se do Ocidente.

A invasão do Afeganistão pelos EUA foi outra oportunidade perdida para se esquecerem os acontecimentos do passado e aproximar Teerão de Washington. Em 2001, o Irão não hesitou em cooperar com os EUA na luta contra a Al-Qaeda e os talibãs. Teerão forneceu Intelligence e apoiou os EUA na operação de contraterrorismo Enduring Freedom.

Os iranianos estavam ansiosos por ajudar Washington e mostrar-lhe os benefícios estratégicos em cooperarem. No entanto, o comportamento colaborativo de Teerão não foi recompensado. Em 29 de janeiro de 2002, no discurso sobre o estado da União, o presidente George W. Bush incluiu o Irão no grupo dos países do “eixo do mal”, fazendo tábua rasa de toda a colaboração prestada pelo Irão aos EUA. Exauriu-se nesse momento, a possibilidade de se ultrapassarem experiências negativas do passado e encetar-se um novo capítulo nas relações entre os dois Estados.

A ter em conta a prosa prospetiva de Brzezinski, não será de estranhar que os três grandes focos de conflitualidade/tensão da atualidade sejam a Ucrânia, Israel e Taiwan, com os EUA a procurar tardiamente contrariar essa aliança anti hegemónica e a procurar reparar erros de cálculo estratégico passados muito difíceis agora de reverter. Como dizia Mike Pompeo, ex-diretor da CIA e ex-secretário de Estado, enganado telefonicamente por uma brincadeira feita por russos, “a Rússia precisa ser puxada de volta para a Europa, para longe da China.” Tarde piaste!

Há semelhanças evidentes naquilo que levou a União Soviética a invadir o Afeganistão, a Rússia a Ucrânia e o Irão a responder militarmente a Israel. Em todas essas situações, procurou-se, com sucesso, provocar o adversário criando-lhe uma situação psicológica insustentável. Visa-se com essas provocações levá-lo a envolver-se militarmente, utilizando esse pretexto para lhe responder e o derrotar, explorando a sua vulnerabilidade percebida.

No Afeganistão, o sucesso do apoio norte-americano aos Mujahidins que combatiam o regime pró-Moscovo de Mohammad Najibullah; na Ucrânia, a interferência de Washington na política interna de Kiev, o golpe de Estado em Maidan (2014), obra dos neoconservadores instalados na Administração Obama (nunca é demais recordar que a obreira Nuland participou em todas as Administrações norte-americanas desde a primeira Administração Clinton, em 1993), o armamento das fações ultranacionalistas e o iminente ataque às comunidades russófonas ucranianas.

No caso do Irão, o ataque a instalações diplomáticas iranianas em Damasco, os sucessivos assassinatos seletivos de dirigentes iranianos, do Hezbollah e do Hamas, muito em particular o de Ismail Haniya em Teerão, tinham como objetivo provocar o Irão, criar-lhe uma situação insustentável, não lhe dando outra alternativa que não fosse a de retaliar. Encostado à parede, o Irão respondeu à provocação e voltou a atacar Israel a 1 de outubro. O fornecimento de armamento e treino militar a Taipé ainda não colocou a China numa situação insustentável, em que não tenha outra alternativa senão intervir, como sucedeu com a Rússia e o Irão.

A Ucrânia e Israel desempenham papeis muito semelhantes no xadrez geopolítico mundial para os EUA. A primeira para controlar a Rússia, e o segundo o Médio Oriente. Se dúvidas existissem sobre isso, elas foram desfeitas num discurso do então energético Joe Biden ao Congresso norte-americano, em 1986, quando afirmou que “Israel é o melhor investimento que fazemos [EUA], caso Israel não existisse os EUA teriam que inventar um Estado de Israel para proteger os nossos interesses na região, os Estados Unidos teriam de inventar Israel.”

É também à luz disto que se deve procurar entender o comportamento de Washington, mais precisamente da ativa ala neoconservadora. Enquanto o enfraquecido Biden procura limitar a resposta de Telavive à retaliação de Teerão, de 1 de outubro, as fações da administração pública norte-americana trabalham nos bastidores em estreita coordenação com Israel, discutindo os possíveis ataques e “explorando opções de resposta ao ataque de mísseis do Irão contra Israel”, como afirmou o vice-secretário de Estado dos EUA, Kurt Campbell.

Segundo o Politico, ao mesmo tempo que a Administração Biden instava publicamente o Governo israelita a reduzir os seus ataques, “funcionários americanos apoiavam discretamente a ação militar de Israel contra o Hezbollah… figuras de topo da Casa Branca diziam a Israel que os EUA apoiariam o aumento da pressão militar contra o Hezbollah.”

Este comportamento aplica-se igualmente à possibilidade de uma contrarretaliação israelita ao ataque iraniano de 1 de outubro. Segundo o texto de Kenneth M. Pollack (Which path to Persia?) publicado pela Brookings, em 2009, o facto de os EUA afirmarem não querer que Israel ataque as instalações nucleares iranianas baseia-se numa estratégia de manter uma negação plausível enquanto, de facto, ataca o Irão, incluindo as suas instalações nucleares.

Por outras palavras, os neoconservadores instalados no poder querem uma guerra com o Irão, querem destruir a sua indústria de armamento, o seu programa nuclear, a sua economia e derrubar o seu governo, mas não querem ser alvo de condenação e retaliação a nível mundial, pelo que estão a armar/apoiar Israel para o fazer por eles.

Falamos daquilo a que Mearsheimer chamou de buck-passing. Isto é, quando uma grande potência se encontra numa postura defensiva, tentando evitar que os seus rivais ganhem poder à sua custa, pode optar pelo equilíbrio ou intervir, transferindo a responsabilidade de agir para outros Estados, mantendo-se à margem no assento traseiro.

Entretanto, multiplicam-se os apelos aos ataques ao Irão. “De facto, esta é a oportunidade ideal para destruir o programa nuclear do Irão. O tempo que o país leva para chegar a uma bomba é de uma a duas semanas. Não está previsto qualquer novo acordo nuclear. O Hamas e o Hezbollah não estão em posição de retaliar. E a República Islâmica acabou de o pedir. De facto, esta pode ser a última oportunidade para impedir Teerão de ter uma bomba.”

Na mesma linha, o antigo primeiro-ministro de Israel Naftali Bennett veio dizer que se trata da “grande oportunidade em 50 anos, para alterar a face do Médio Oriente, destruir o programa nuclear do Irão, as instalações energéticas terroristas, que se encontra mortalmente incapacitado.” “Temos uma justificação. Temos ferramentas. Agora o Hezbollah e o Hamas estão paralisados, o Irão está exposto. Há alturas em que a história nos bate à porta, e nós temos de a abrir. Esta oportunidade não pode ser desperdiçada.”

De facto, este é o momento indicado para o fazer aproveitando o vácuo de poder na Casa Branca e antes que Trump se possa vir a sentar-se na Sala Oval. Nesta matéria, Trump não é fiável para os neoconservadores, que já os tinha impedido em 2019 de materializar um ataque ao Irão. Os neoconservadores têm de aproveitar esta janela de tempo, porque com Trump no poder, se ganhar as eleições, essa possibilidade pode desaparecer.

Os projetos, as ideias e as ambições pessoais e políticas de Zelensky e Netanyahu só serão concretizáveis se inseridas numa grande estratégia, que lhes é alheia, atuando por procuração e colaborando na concretização da primazia geoestratégica norte-americana abraçada pelos neoconservadores: provocar mudanças de regime em Moscovo e Teerão (como o afastamento do primeiro-ministro iraniano Mohammed Mossadegh, em 1953, que teve a aleivosia de privatizar as petrolíferas) infligindo-lhes derrotas estratégicas.

Nem a Ucrânia, nem Israel teriam conseguido resistir não fosse o apoio político, financeiro e militar proporcionado por Washington. Tanto Israel como a Ucrânia estão a servir interesses norte-americanos, em particular de um poderoso segmento das suas elites. O envolvimento de Taiwan nesse projeto encontra-se, por enquanto, comprometido.

A grande interrogação que se nos coloca neste momento é saber se Teerão tem capacidade para responder à retaliação israelita, como Moscovo está a responder ao desafio geoestratégico colocado por Washington. Teerão já fez saber aos EUA, através do Qatar, que a fase da contenção unilateral terminou. Está para ver se vai conseguir dar a volta por cima, como estão a fazer os russos.