No primeiro capítulo do livro “A Imperfeição da Filosofia”, Maria Filomena Molder lança-nos um repto desconcertante: “escutaríamos nós um carvalho ou uma pedra, se eles dissessem a verdade?”. A pergunta é inspirada por uma passagem do “Fedro” (275b-d) na qual Platão, após comentar o mito da invenção da escrita, se reporta a um tempo em que as pessoas se preocupariam apenas com a verdade daquilo que era dito, e não com a origem dessa mensagem. Refere Platão que no templo dedicado a Zeus em Dodona, se acreditava que as primeiras palavras divinatórias teriam sido ditas por um carvalho. Sendo tidas por verdadeiras, não era a possível estranheza da sua origem que as desqualificaria.
Estamos perante um desafio, aquele com que nos deparamos ao tentar alargar a nossa compreensão pelo confronto com possibilidades de sentido que nos são alheias. A um primeiro nível, é isso que está em causa no esforço de compreensão intercultural, quando tentamos entender a cultura que nos é diferente nos seus próprios termos, fazendo-lhe assim justiça. Quando se trata de compreender a natureza, sobretudo tendo em vista a sua conservação, o repto de tentar entender o que ela “diria” é evidentemente, para nós, meramente imaginativo. Mas existem povos cuja mundividência e forma de habitar a natureza, radicalmente diferentes das nossas, devem suscitar-nos uma reflexão profunda.
A catástrofe permanente
Este texto é sobre o povo Yanomami. Recentemente, chegaram-nos notícias de mais uma catástrofe que se abateu sobre este povo indígena que habita em Roraima, no norte da floresta amazónica, num território de fronteira entre o Brasil e a Venezuela. O cenário não era novo. Relatos de garimpo ilegal dentro da reserva indígena Yanomami colocaram a nu, mais uma vez, a destruição da floresta amazónica, a contaminação das águas e os profundos impactos no ecossistema. A novidade era a escala da destruição.
Foi descoberta uma estrada clandestina de 150 km dentro da reserva, com presença de escavadoras e um potencial de garimpo muito superior ao existente anteriormente. Tudo isto num contexto político particular, o do governo Bolsonaro, que incentivou a exploração mineira na Amazónia e viu aumentar exponencialmente a desflorestação.
A história de contacto do povo Yanomami com o exterior é, infelizmente, marcada por sucessivas vagas de eventos trágicos, desde os confrontos com milhares de garimpeiros ilegais até a vagas de epidemias trazidas de fora, como as de sarampo, malária e gripe. Porventura, o que terá dado maior visibilidade a esta catástrofe recente terão sido as imagens de indígenas desnutridos, sobretudo idosos e crianças, o que inevitavelmente trouxe à memória os campos de concentração de outros tempos.
No início deste ano, e na sequência do trabalho corajoso de Eliane Brum, começou a destapar-se a ponta do véu sobre o profundo impacto humano que se veio juntar ao ambiental.
De acordo com uma reportagem da plataforma SUMAÚMA, o número de mortes atribuídas a causas evitáveis (doenças tratáveis) de crianças Yanomami com menos de 5 anos aumentou 29% durante a vigência do governo Bolsonaro: nada menos que 570 crianças contabilizadas (embora os números reais devam ser bem maiores). Ao contexto de aumento de garimpo e escassez de pesca e caça juntou-se o colapso do sistema sanitário durante estes anos.
Não há como olhar para esta realidade e não ficar chocado. Em Portugal temos alguém como Boaventura de Sousa Santos, que tem feito um trabalho notável de reflexão e promoção da causa indígena, intervindo criticamente sobre esta situação. Mas, salvaguardando esta e outras honrosas exceções, que incluem trabalho académico sobre o assunto, se excluirmos o ímpeto noticioso que acompanha situações de maior crise como a atual, não se pode dizer que a questão Yanomami tenha presença regular no nosso espaço público.
Compreender o outro
A catástrofe acima descrita só pode merecer o nosso repúdio e o nosso apelo para que nunca mais se possa repetir. O novo governo Lula já terá prometido a retirada definitiva dos garimpeiros e medidas de apoio ao povo Yanomami. Quanto a mim, e sob o choque das notícias acima descritas, decidi começar a colmatar a minha enorme ignorância sobre este povo.
Por sugestão do meu colega e amigo Pedro Hussak, professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e que me tinha recomendado o livro pouco tempo antes, mergulhei numa obra escrita em coautoria por Davi Kopenawa, xamã Yanomami, e Bruce Albert, etnólogo: “A Queda do Céu. Palavras de um xamã yanomami”.
Trata-se de um objeto literário único, e que se recomenda vivamente. É o resultado de uma colaboração de mais de 30 anos entre os dois autores. Originalmente publicado em francês em 2010, e redigido após duas séries de gravações de conversas tidas na língua Yanomami entre ambos (entre 1989 e 1992 e 1993 e 2001), foi, entretanto, traduzido para português e publicado com um prefácio de Eduardo Viveiros de Castro em 2015.
O livro tem três partes principais, “Devir Outro”, “A Fumaça do Metal” e “A Queda do Céu”, nas quais Davi Kopenawa se exprime em primeira pessoa, devidamente contextualizadas pelas intervenções iniciais e finais de Albert. Nele, o trabalho etnográfico e de redação de Albert faz sobressair a voz autoral de Kopenawa, na qual se entrelaçam o relato autobiográfico e a reflexão xamânica e que, como sublinha Albert (p. 537), contém um “duplo eu” por ser “escrito / falado a dois”, segundo a expressão de Philippe Lejeune.
O etnólogo assume assim o papel de um “redator discreto” (p. 536) que não apaga a mediação necessária para a construção da narrativa, mas, ao mesmo tempo, coloca o relato do xamã no centro.
Ler esta obra implica uma imersão na cultura Yanomami, porquanto ao percorrê-la somos introduzidos na sua cosmologia e na sua história. Temos uma abertura para o que significa habitar no universo Yanomami, o universo de uma floresta que está viva e é habitada por espíritos (xapiri) convocados pelos xamãs, espíritos que destroem, mas também protegem. Percebemos a importância dos antepassados para esta comunidade e a importância da manutenção de uma memória viva, a lutar contra a ameaça do esquecimento.
Temos também, através das passagens autobiográficas de Kopenawa e das memórias ancestrais que vai reproduzindo, o relato da forma como o contacto com os brancos (napë) foi sendo percecionado pela comunidade, desde o contacto com missionários à chegada dos garimpeiros e à abertura da estrada Perimetral Norte. Encontramos ainda, na terceira parte do livro, a narrativa de como Davi Kopenawa, tornado porta-voz do povo Yanomami, correu o mundo desde a década de 1980 para denunciar o extermínio do seu povo e a ameaça que impende sobre a floresta amazónica.
Esta é uma obra colocada, quer por Bruce Albert, quer por Viveiros de Castro no prefácio, em paralelo com o clássico “Tristes Trópicos” do grande antropólogo francês Claude Lévi-Strauss – até podemos encontrar a assinatura do contrato de “A Queda do Céu” com a editora francesa em 2009, na presença simbólica do livro de Lévi-Strauss. Há, contudo, um aspeto que a torna singular.
Não é só o facto de estas descrições serem assumidas por Kopenawa em primeira pessoa, reivindicando, portanto, para a cultura Yanomami, a capacidade de se descrever nas suas próprias palavras, em vez de lhe deixar colar as descrições feitas por terceiros. É ainda que este xamã, que fala português, tendo servido de intérprete ao serviço da FUNAI (a Fundação Nacional dos Povos Indígenas), nos devolve a imagem de como nós (e, aqui, por “nós”, entenda-se, por analogia, qualquer coisa como a “civilização ocidental”) aparecemos aos olhos de um Yanomami.
Este esforço, ao qual Viveiros de Castro sugestivamente chama uma “contra-antropologia” (p. 24), revela-nos, seguindo Kopenawa, como “o povo da mercadoria” (não está mal visto), sempre apressado, “cheio de esquecimento”, obcecado com os bens materiais, não olhando a meios para obter os seus fins, e negligenciando a inegável destruição causada à natureza, bem como o esmagamento de todas as formas de vida tradicionais. Como se afirma numa frase lapidar: “Temo que sua excitação pela mercadoria não tenha fim e eles acabem enredados nela até o caos” (p. 419).
O dever que nos prende à Terra
Ver o mundo pelos olhos de um Yanomami, na medida em que tal seja possível a quem, como nós, habita um sistema de crenças completamente diferente, implica encontrar a preocupação ecológica por uma via ontológica. Para o povo Yanomami a terra existe graças a Omama e os xamãs desempenham um papel, juntamente com os seus espíritos, para impedir a “queda do céu”. Estando a floresta viva, ela poderá eventualmente ser destruída por ação humana, e os últimos capítulos do livro lançam a hipótese de uma catástrofe ecológica desse género.
De passagem, Kopenawa questiona-se (p. 429) se o interesse museológico ocidental pelos objetos Yanomami não radicará já na consciência de que são uma forma de vida em extinção. A ser assim, a profecia, por conseguinte, é a de que as “fumaças de epidemia” e o retorno ao caos engoliriam não só os Yanomami como a restante Humanidade. Nesse sentido, o esforço do xamã não é só de defesa da “sua” floresta, como também daquilo a que chamam “a grande terra-floresta” (urihi a pree), isto é, a natureza por inteiro (p. 482).
Eis, em suma, uma fonte para nos permitir entrever a mundividência Yanomami. Mas também para compreender de que forma na catástrofe recente que se abateu sobre eles também está em causa não só a proteção da natureza, mas também a salvaguarda de uma forma de vida. Todas as mortes evitáveis são trágicas e o dever de proteção da natureza é inquestionável.
Nada mais seria preciso para repudiar os eventos recentes. Mas, para além disso, saibamos igualmente ouvir o povo Yanomami e tentemos entender a sua visão do mundo, e de nós próprios, refletindo o que ela nos mostra sobre quem somos e o que andamos a fazer, bem como sobre o mundo que queremos legar às gerações futuras.