Tornou-se um lugar-comum dizer que o combate à pandemia não permite que a política esteja presente. Nada mais errado e enganador. A política está presente em toda a actividade social, e esta nefasta pandemia não é excepção. Aliás, é da maior importância que não se perca consciência disso mesmo, e que a parte do conhecimento e do pensamento que se dedica a esta área não negligencie esta reflexão.

A pandemia tem sido um teste a sistemas de governo e a abordagens ideológicas, constituindo um importante instrumento de análise que a ciência política, a sociologia e a economia não podem ignorar. Se, na frente de batalha, a saúde, a matemática, a física, a química, as finanças, constituem a frente armada de combate, enquanto ciências exactas indispensáveis, é igualmente indispensável, para interpretar o presente e projectar o futuro, uma acção intensa das ciências sociais neste gigantesco desafio.

Pouco tempo depois deste fenómeno ter eclodido, começaram a fazer-se ouvir vozes que, de modo aparentemente inocente, nos diziam que a eficácia da reacção chinesa só era possível num país com tal músculo e capacidade de impor leis e normas. Leia-se, a ditadura é extremamente eficaz na protecção da saúde pública. Entenda-se, ditadura ou morte! Curiosamente, a China hoje é falada pela sua eficácia no combate ao vírus, inegável, enquanto se esquece a absoluta insegurança alimentar em que vivia, e que terá dado origem à pandemia, também inegável.

Com maior eficácia do que a China, as democracias da região, Japão, Taiwan e Coreia do Sul, reagiram de modo notável e exemplar à crise. Na própria China, os dois exemplos de maior sucesso, Macau e Hong Kong, são regiões autónomas especiais muito desviadas politicamente do politburo de Pequim. A reter, sim, a China reagiu com eficácia assinalável à crise que eclodiu por falhas no seu próprio sistema, mas tal não se deve ao facto de ser uma ditadura comunista, como os vizinhos bem provaram.

Na Europa, a pandemia não poupa ideologias, mas poupa a robustez das democracias. Não é irrelevante que Espanha e Itália sejam os países mais afectados nesta crise. O número de mortes excede de longe as piores estatísticas conhecidas, deixando a nu a fragilidade dos sistemas. Ambos são países divididos ideologicamente, com populismos vários emergentes e com poder efectivo. A fractura, o divisionismo que a extrema-esquerda professa com poder em Espanha, tem paralelo em Itália com a direita populista e igualmente fracturante.

Neste pelotão dos instáveis fracturados, podemos também incluir a Bélgica, com a sua recente incapacidade de encontrar soluções de governabilidade e o estado de caos em que agora mergulhou. O pacto de paz social que faz um Estado forte quebrou-se em ambos os países. A abordagem menos ortodoxa e de resultados menos evidentes que os nórdicos adoptaram, não é espectacular, mas não é caótica. A reacção de França é forte e inteligível, embora a realidade represente um desafio gigantesco e o custo se preveja enorme.

Dos grandes países, sobra a Alemanha, com um número assinalável de infectados, mas a percentagem de mortes mais baixa do mundo e um plano de contingência tão eficaz quanto discreto. Na retoma, a economia alemã agradecerá.

Por fim, os populistas que tanta gente excitaram. Boris Johnson, acabadinho de sair da União Europeia, viu a pandemia como uma bênção, a fantástica oportunidade de construir o seu momento Churchill. De tropeção em tropeção, acumulando teses estúpidas e erráticas, quando não mesmo criminosas, BoJo é uma figura patética perdida no mar difícil da exigência do momento. A gravidade e exagero dos termos que continua a empregar nos seus discursos, não motiva ninguém, é apenas ridículo. Os britânicos confiam tanto em Johnson quanto os portugueses em Marta Temido.

Segue-se Trump, com uma sequência de intervenções dignas do anedotário universal, não fosse a gravidade do momento. Tal como com Johnson, o momento é exigente demais para qualquer um deles; exige estadistas, homens com visão, íntegros e respeitáveis. Pessoalmente, a situação americana é a que mais me preocupa; não sendo nada bom para a ordem mundial a falência dos EUA às mãos de um incapaz e da peste que o desmascarou definitivamente.

A correcção de tiro dos Democratas, com a opção pelo moderado Joe Biden, é uma réstia de esperança no futuro, mas, as proporções da hecatombe poderão comprometer rigorosamente tudo.

Concluindo a rota dos grandes populistas, Jair Bolsonaro. Como apaixonado pelo Brasil e pelo povo brasileiro, tremo a cada declaração pública do seu presidente. A mistura de irracionalidade, irresponsabilidade e verborreia é absolutamente explosiva. Até os ministros do seu governo têm infinitamente mais sentido de estado e de bem comum.

Prevê-se o pior no Brasil, e nada está a ser feito. Tudo o que não deve ser prática é promovido pelo presidente. À crise de saúde pública inevitável, seguir-se-á a ainda maior degradação da qualidade de vida, o aumento da insegurança e da violência, o aprofundamento do caos. Pobre país este, tão extraordinário, condenado a oscilar entre a cleptocracia marxista e a loucura populista.

Uma alínea final sobre Portugal. Em contraste com o descrédito absoluto da ministra da Saúde e da Directora Geral da Saúde, que deviam ter sido substituídas há muito, pelo menos, na comunicação com o povo português, pode dizer-se que António Costa tem sido mais consistente e tranquilizador.

Há muitas falhas, muito a fazer, um estado de emergência geral em curso, mas o pacto informal de regime entre todos os líderes políticos revela uma classe política liderante à altura do momento. Tal não invalida, antes exige, o escrutínio e fiscalização de quem é oposição, mas a abordagem responsável que temos visto é um sinal muito reconfortante.

Uma nota muito positiva para os cuidados que Presidente, Parlamento e Governo tiveram na abordagem do estado de emergência, a comprovar as vantagens claras do equilíbrio de poderes do nosso sistema e a confirmar a maturidade da nossa democracia.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.