A propósito de um texto de João Miguel Tavares

É muito mau que a pessoa que foi incumbida pelo Presidente da República de fazer o discurso do 10 de Junho venha um mês depois apresentar argumentos a favor da superioridade de umas culturas sobre outras.

Lamento que se tenha escrito tanto sobre o que Maria de Fátima Bonifácio escreveu. Concorde-se ou não com o que pensa, creio que ninguém discorda da mediocridade do texto. Então por que se debate tanto um texto medíocre ao ponto de se dar azo à vitimização da autora que o escreve, não tarda muito erigida em Joana d’Arc da intelectualidade doméstica do politicamente incorrecto e afins?

Enfim, fora este comentário lateral, o ponto é que é o texto de João Miguel Tavares (JMT) do “Público” de ontem que não deve passar sem comentário. Não porque seja menos pobre, mas porque há um lastro institucional que não se larga assim do pé para a mão para navegar na leviandade do uso dos conceitos e na esperteza argumentativa.

Há dois pontos preliminares muito simples. Primeiro, só faz sentido falar em superioridade de uns sobre outros se previamente uns e outros concordarem em valores e objectivos a perseguir e numa escala de progressão em direcção a eles. Se uns ignoram o que outros pensam sobre o que é ou deixa de ser superior, não temos respeitada essa regra – aliás, de uma forma muito pouco “superior”. Segundo, se uns impõem a outros o que é superior porque crêem na superioridade do músculo económico, militar e tecnológico, não só a regra não é respeitada como é abusada.

Dizer estas duas coisas não é relativismo. Pelo contrário, é escrúpulo sobre o que podemos afirmar com segurança. E é preciso muita segurança quando o que dizemos afecta a vida de outros. Não desejaríamos “superiormente” falhar onde atingiríamos quem, no nosso fundo vago e escuro de estereótipos, tomamos por culturalmente inferior, certo?

Feitas estas ressalvas, no sentido do que pudermos dar por partilhado, e portanto razoavelmente consensual, podemos falar de superior ou inferior e até de progresso. Obviamente, conceitos levados com a relatividade do acordo em que assentam. E quando digo relatividade o que quero excluir é um uso absoluto de “superior”, “inferior”, “progresso”, que pudesse ser imposto de fora a alguém. De outro modo, falhamos a convicção do respeito pela autonomia como condição de emancipação e da própria democracia.

Ora, quando JMT propõe urbi et orbi um critério de superioridade cultural pronto a usar, está desde logo a falhar o protocolo para uma inclusão séria na discussão, e isso é um péssimo serviço que ele presta à coisa pública.

Para além deste problema formal, há, obviamente, um problema de conteúdo. Para JMT, quanto mais as oportunidades se proporcionam mais superior se é culturalmente.  Cito-o: «“superior” no sentido de acreditar que há certos tipos de cultura que oferecem às sociedades que a cultivam mais oportunidades para todos os seus membros e uma maior liberdade para cada indivíduo poder ser aquilo que deseja.»

E se em vez de mais oportunidades elegêssemos mais igualdade como critério de superioridade? Ou mais reconhecimento? Ou mais liberdade num sentido diverso do da liberdade dos liberais? Ou, quem sabe, algumas oportunidades mais socialmente apreciadas do que outras?

Na verdade, mesmo que não perfilhemos nenhuma destas em exclusivo, ou mesmo nenhum composto variável entre várias, o ponto é que é sempre uma enormidade arriscar-se uma “superioridade”. Aliás, só em condições muito beneficiadas alguém se pode dar ao luxo de tanto à-vontade. Não é JMT que se lança de pára-quedas sem saber se tem outro de recurso. Resta saber se tem consciência de que assim, ele é apenas quem, simbolicamente, está a empurrar outros. Com ou sem pára-quedas, vá-se lá saber.

Finalmente, as conclusões a que se permite JMT no seu texto não são aceitáveis. Curiosamente, passaram a destaque na edição impressa do “Público”: «Não é por acaso que não foi um zulu a escrever Romeu e Julieta, nem foi em Portugal que o iPhone foi inventado.» Sério? Não seria igualmente verdade dizer-se que não é por acaso que não foi um português a compor um cântico zulu do século XVIII?

O que se infere do destaque são duas mensagens injustificáveis. Primeira: a frase esconde a presunção de JMT de que Romeu e Julieta é superior a qualquer realização cultural zulu (e não vem nada ao caso se um escritor famoso fez comparação semelhante). Segunda: JMT nem sequer leva a sério o seu critério, apenas para zulu ver, da superioridade baseada na maior latitude de oportunidades proporcionadas. Como é que esse critério se aplica a Romeus e Julietas?  E já agora a que propósito vem a referência à invenção do iPhone? Com franqueza, é a nova versão de há a Europa mesmo Europa, polida e civilizada, e há a outra, dos PIGS?

O que JMT não notou é que exprimiu apenas uma perspectiva de superioridade ocidental baseada no esquecimento da história de dominação ocidental sobre o resto do mundo e de como esta “cultura” de “mais oportunidades” só se fez assente na eliminação das “oportunidades” alheias. O discurso da superioridade será sempre o da segregação prática e da falsificação teórica. Como se alguma vez tivessem sido histórias separadas. Mas o barco é o mesmo. Foi sempre o mesmo. Também Otelo tinha um mouro.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.