O sistema de governo português é, por regra, qualificado como semipresidencialista.

Assumidamente inspirado no texto constitucional francês da V República, o semipresidencialismo português não resultou de um debate teórico aprofundado sobre as vantagens e desvantagens dos diferentes modelos de governação disponíveis no catálogo do direito comparado. Resultou antes do compromisso historicamente possível entre duas forças políticas divergentes e que se digladiavam ao tempo dos trabalhos da Assembleia Constituinte, em 1975.

Por um lado, o Movimento das Forças Armadas (MFA), que se apresentava como titular de uma legitimidade revolucionária, própria de quem contava nas suas fileiras com todos aqueles que, com risco pessoal, tinham planeado e executado um golpe militar vitorioso. Por outro lado, os partidos políticos, que por via das eleições para a Assembleia Constituinte – as primeiras realizadas em Portugal por sufrágio universal – tinham adquirido o direito a representar o povo soberano e estavam, portanto, ungidos de uma inquestionável legitimidade democrática.

O MFA queria um sistema de governo presidencialista, na esperança de colocar um dos seus mais distintos membros na Presidência da República. Pelo contrário, os partidos políticos tinham clara preferência por um sistema parlamentar, uma vez que só este permitiria chamar o poder efetivo à Assembleia da República, em cujo hemiciclo estavam agora sentados.

A história, porém, pesava contra qualquer um destes dois modelos.

Depois de uma longa experiência autoritária, com décadas de poder pessoal do Presidente do Conselho, não seria avisado escolher um sistema de governo que, como o presidencialista, concentra muito poder (a chefia do Estado e a chefia do Executivo) nas mãos de uma só pessoa. Mas, em contrapartida, a instabilidade governativa crónica em que redundou o parlamentarismo da I República era ainda um trauma não superado, tanto mais que tinha estendido a passadeira vermelha à ditadura militar.

O semipresidencialismo à maneira francesa foi a saída possível. Os partidos políticos não tinham como recusar a eleição direta do Presidente da República. De alguma forma, estavam mesmo comprometidos com ela, por causa da candidatura presidencial do General Humberto Delgado e da subsequente alteração constitucional que o Estado Novo havia promovido, entretanto, precisamente para eliminar a eleição direta do chefe de Estado e assim poupar o regime a novos sobressaltos. Por sua vez, o MFA aceitou o semipresidencialismo com a condição (implícita) de os partidos se comprometerem a apoiar a candidatura de um militar insigne nas primeiras eleições presidenciais após a aprovação da Constituição – o que, de facto, veio a acontecer com o General Ramalho Eanes.

Nos primeiros tempos da democracia portuguesa, o Presidente da República constituía um referencial de estabilidade política, num contexto em que o sistema partidário – volátil e ainda em formação – não favorecia de todo a formação de governos de legislatura. Aliás, ainda que a Aliança Democrática tenha alcançado maiorias absolutas em 79 e 80, só com as duas maiorias absolutas conquistadas pelo PSD em 87 e 91 é que a estabilidade política – em total sintonia com a doutrina do Professor Cavaco Silva – se assumiu também como um valor determinante, quase sagrado, do pilar governamental do sistema de governo.

Esta doutrina cavaquista da estabilidade governativa foi, depois, glosada por outros primeiros-ministros e outros presidentes. Umas vezes de forma clara, outras de forma mais ou menos envergonhada. Os acordos escritos que estiveram na origem da Geringonça constituíram ainda um pálido reflexo dessa doutrina. Resta saber se tais acordos não representarão também o último estertor desta mesma visão da política portuguesa.

Sem Cavaco Silva na Presidência (para exigir aos partidos novos compromissos para a legislatura), sem uma maioria absoluta no Parlamento e com um número sem precedentes de forças políticas aí representadas, o espectro pode bem ser o do regresso da instabilidade governativa ou, pelo menos, o da paralisia da ação executiva.