Um dos problemas clássicos dos estados de exceção constitucional é o de como garantir que não se arrastam indefinidamente. Pode até não ser fácil entrar, mas sair é sempre bastante mais difícil.
A Constituição portuguesa prevê que o estado de sítio e o estado de emergência devem ser decretados apenas pelo tempo necessário para repor a normalidade e nunca podem ter duração superior a 15 dias. Mas prevê também a possibilidade de renovação e não estabelece limites ao número de renovações.
Uma vez aberta a porta, nunca se sabe ao certo quando se vai conseguir fechá-la. Percebe-se, portanto, uma certa ansiedade em encerrar o estado de emergência em curso, este capítulo difícil da nossa vida coletiva.
Porém, mais perigoso do que renovar o estado de emergência mais uma vez são as tentativas de “normalização da exceção”, com o arrastamento para dentro de um (suposto) tempo de normalidade constitucional das restrições a direitos fundamentais – extensas e fundas – decretadas para vigorar apenas e só durante o presente estado de exceção.
Lamentavelmente, é esse o caminho que Portugal parece querer seguir, a concretizar-se a ideia de obrigar os cidadãos a ficar trancados em casa ao abrigo de uma figura relativamente obscura denominada “situação de calamidade”, descoberta à pressa num regime legal sobre proteção civil.
Trata-se de uma manifesta fraude à Constituição. Se a 18 de março, quando Portugal tinha 640 casos de Covid-19, foi necessário decretar o estado de emergência, por que razão daqui a uns dias – em que teremos seguramente mais de 25.000 infetados – já será suficiente declarar que o país está em “situação de calamidade”?
A inconstitucionalidade decorre de duas ordens de razões.
Por um lado, pretende-se continuar com medidas que restringem intensa e extensamente direitos fundamentais – a começar pelas liberdades de deslocação e fixação – sem que os mesmos estejam juridicamente suspensos.
Ainda que a Constituição permita restrições a direitos fundamentais em tempo de normalidade, não admite nunca que o seu “conteúdo essencial” seja posto em causa. As leis restritivas não podem descaracterizar os direitos que atingem – como sucede, por exemplo, quando a liberdade de circulação da maioria dos cidadãos é reduzida a um conjunto de exceções a uma obrigação jurídica genérica de “recolhimento domiciliário”.
Uma liberdade não é o somatório de atos de tolerância das autoridades relativamente à conduta dos cidadãos. Por outro lado, aceitar que a dita “situação de calamidade” pode ter consequências significativas nos direitos fundamentais dos cidadãos é desferir um rude golpe no princípio da separação de poderes, tal como definido constitucionalmente.
O estado de emergência é decretado pelo Presidente, após autorização do Parlamento e audição do Governo. Exige-se, portanto, convergência de posições entre os três órgãos de soberania – o que deve dar alguma tranquilidade aos cidadãos. A “situação de calamidade”, prevista na lei da proteção civil, é declarada apenas pelo Governo, sob a forma de Resolução do Conselho de Ministros.
A Constituição estabelece expressamente que o estado de emergência “não pode afetar a aplicação das regras constitucionais relativas à competência (…) dos órgãos de soberania”, mas, paradoxalmente, a declaração de “situação de calamidade” permitirá um reforço substancial do poder do Governo, no confronto com o Presidente e com o Parlamento.
Para ser mais preciso, com base num conjunto de preceitos pobremente redigidos numa lei ordinária sobre proteção civil, o Governo ficaria com o poder de decidir sozinho, pondo e dispondo sobre o alcance real de um leque significativo de direitos dos cidadãos. Será que é mesmo isto que queremos? Por tempo indeterminado?