Neste tempo de paragem de emergência, propomos uma série de reflexões sobre o tempo vivido nas suas dimensões sociais, económicas e existenciais.  Trata-se de um trabalho em progresso, necessariamente efémero e sem qualquer outra ambição que não seja a de aprofundar o questionamento crítico sobre o momento de crise que estamos a atravessar. 

 

Num texto desastroso, publicado há mais de um mês, o filósofo italiano Giorgio Agamben queixava-se, já então, de uma resposta desproporcionada à Covid-19, e que corresponderia, no essencial, a uma oportunidade para introduzir na sociedade italiana a lógica do estado de exceção e assim o ir normalizando. Como sabemos agora, a resposta pode ter sido errada e incompetente de muitas maneiras, mas desproporcionada não.

Obviamente, lida hoje, a tomada de posição de Agamben, se levada a sério quando publicada, teria desmobilizado esforços de contenção e conduzido a uma situação ainda mais desnorteada. Desastrosa, portanto.

Poderia ser o caso que Agamben estivesse mal informado, e poderia, sobretudo, ser o caso de que, bem informado, se tivesse fiado excessivamente no conhecimento de que dispunha para logo tirar as suas conclusões filosóficas. Por cá foi assim com projeções matemáticas e de economistas. Esta falta de epistemologia defensiva não é certamente indiferente às condições aceleradas em que vivemos e em que acaba a pensar-se também demasiado depressa.

Mas num ponto Agamben tinha e continua a ter razão: o estado de exceção confirma a tendência, que deve preocupar, para sermos reduzidos a vida biológica, para fazer deslizar a vida para sobrevivência absoluta.

Se juntarmos a isso a chamada de atenção que Byung-Chul Han faz para a capacidade de conter o vírus demonstrada pela “biopolítica digital”, de controlo governamental de big data, como sucedeu, tanto quanto se sabe, na China, há um risco efetivo de normalização da exceção. Esta, que seria por princípio rara e altamente provisória, pode tender a permanecer como um regime de baixa intensidade, capaz de governar as nossas vidas num sentido de vida reduzido à sua dimensão biológica.

Mas, de novo, não é claro, pelo menos definitivamente claro, como deve ser lida, na sua expressão maioritária, a exceção que estamos a viver. A reação social e política a que temos assistido não tem aceitado que o fantasma do caos económico e social pós-pandemia perturbe o enfrentamento da pandemia. Não tem aceitado o primado da economia sobre o respeito da vida de cada um, não importa a idade ou a condição. E, verdadeiramente, não tem feito das prorrogativas do estado de exceção o essencial da sua ação nesta crise.

Pelo contrário, é mais o sentido de comunidade, naturalmente sob um imprescindível concerto governamental, que nos tem regulado, até ver de forma não desestruturada. O que não dispensa algum tipo de monitorização recíproca e de apoio continuado dos poderes públicos. Mas, por difíceis que sejam estes dias de confinamento domiciliário, parece não ser a normalização da exceção o que está em curso.

A subordinação da necessidade económica à exigência ética de salvar as vidas, não importa o seu potencial produtivo – leia-se idade –, não é o único aspeto a sublinhar na resposta à pandemia. Além disso, é preciso perceber que a paragem forçada da sociedade é feita, no fundamental, em nome da proteção dos mais velhos, num exercício de solidariedade intergeracional global, que é das famílias em primeiro lugar, mas é também das instituições políticas.

Neste sentido preciso, a vida tem sabido dizer não à lógica da sobrevivência, e a humanidade até agora tem recusado a sua redução à biologia. Mas estamos cientes de que a suspensão do quotidiano habitual, muitas vezes de mera sobrevivência – ironicamente em nome da sobrevivência dos que amamos – é um compasso de tempo em que sustemos a respiração. Até que ponto a podemos suster?

De novo como ironia, ou como consciência de paradoxo, a precariedade maior deslocou-se para esta suspensão em que todos estamos coletivamente empenhados. Suspendemos a vida que levávamos para sobreviver, decidimos a precariedade coletiva extrema de suspender toda a precariedade.

Mas esta suspensão do tempo corre o risco de ocultar quase totalitariamente imensas invisibilidades que se tornaram ainda mais opacas e que não cessam de acontecer: a invisibilidade do despedimento ilegal, ou da não renovação do contrato, a invisibilidade da violência doméstica ou do descuido no cuidado ao outro… A suspensão prende-nos a todos, mas uma parte de nós está já a ficar para trás. Não sabemos quantos e em que condições, contudo não é difícil imaginar que serão muitas pessoas.

Uma outra invisibilidade disseminada vislumbra-se, por exemplo, nas pequenas saídas à rua e no modo como o transeunte é evitado pelo desviar do trajeto, mas, também, do olhar e do reconhecimento da sua presença. O outro estranho passou a ser uma ameaça potencial por receio de eventual contágio. Com o prolongamento do período de quarentena a invisibilidade do medo pode tornar-se corrosiva e comprometer drasticamente o sentido de comunidade.

Para impedir que estas invisibilidades nos dominem, a solidariedade que sustentamos como se sustivéssemos a respiração, uns longe dos outros, mas, em cada gesto nosso, com a mente nos outros, tem de ser modelo e valor para que esta não expluda em desigualdades e opressão social. Veremos até que ponto a propensão para a solidariedade pode ser o motor de um questionamento e de um sentido de ação para o futuro que nos aguarda.

 

André Barata é autor do livro E se Parássemos de Sobreviver: Pequeno Livro para Pensar e Agir contra a Ditadura do Tempo, Documenta, 2018.

Renato Miguel do Carmo é co-autor do livro A Miséria do Tempo: Vidas Suspensas pelo Desemprego, Tinta-da-China, 2020.