Neste tempo de paragem de emergência, escrevemos uma série de dez artigos a partir reflexões sobre o tempo vivido nas suas dimensões sociais, económicas e existenciais. Tratou-se de um trabalho em progresso que visou aprofundar o questionamento crítico sobre o momento de crise que estamos a atravessar.
Encerramos com este texto a série de artigos intitulada Soberanos do Tempo, publicados semanalmente nas últimas dez semanas. Ao longo dos escritos fomos detetando relações e interceções entre os vários temas abordados e o modo como as diferentes temporalidades se manifestaram no contexto da presente crise, aprofundando, em muitos casos, tendências que já vinham de trás. Na verdade, a interseccionalidade gerada entre diferentes desigualdades e injustiças sociais tornam-se ainda mais vincadas e irredutíveis quando cruzadas com as temporalidades vigentes, tanto as dominantes que se uniformizam crescentemente e atingem quase todos, como as que corporizam opressões, vulnerabilidades e precariedades.
As temporalidades interseccionam-se com as múltiplas desigualdades (de rendimento, de género, de etnia e raça…), com os diferentes modos de vida (incluindo os da vivência da morte), com os ritmos da aceleração e os momentos de paragem, com as dimensões do humano e a dificuldade de superação da biologia, com a dura realidade dos processos distópicos ou a alternativa das utopias realistas. O tempo social está embutido nos poros da sociedade, das suas superfícies mais ásperas e irregulares aos seus recantos mais escondidos e impercetíveis. Vários foram os textos onde tentámos descodificar algumas dessas invisibilidades nem sempre faladas no espaço púbico, nos debates políticos ou nos fóruns científicos.
No entanto, apesar da sua transversalidade, enquanto assunto de discussão, o tempo social é recorrentemente remetido para uma certa clandestinidade. Em parte, isso deve-se à ação das forças sociais e económicas hegemónicas que tendem a sobrepor o tempo abstrato e contínuo a todas as outras formas de temporalidade, confinando-as, por sua vez, para as margens dos sistemas e das arenas de comunicação e debate. Num primeiro momento, não parece haver grande dúvida de que a crise pandémica intensificou a periferização das temporalidades destoantes, aquelas que não se encaixam na engrenagem da indústria que transforma quase tudo em mercadoria.
No entanto, só a partir das temporalidades destoantes se poderão gerar alguns curto-circuitos na fabricação dessa engrenagem que parece não ter fim. Para que o tempo tenha futuro e não seja o perpétuo presente agarrado ao simples mecanismo, é necessário que se dê a interrupção do fluxo. O tempo não pode existir nos indivíduos e persistir nas sociedades contemporâneas apenas como passagem. Uma mera sequência numérica que impõe ritmos externos, aos quais não conseguimos escapar. O tempo deve poder ser morada habitável, onde se está mais do que de passagem.
Interromper a passagem mecanizada e cronológica pode representar, por exemplo, reter uma membrana do tempo a que retornamos por vontade e desejo próprios, sem que uma força exterior nos impele a ter obrigatoriamente de seguir em frente e largá-la irremediavelmente para trás. Essa membrana pode deter um significado particular que apenas nós reconhecemos, como pode gerar novos esquemas simbólicos passíveis de serem partilhados em comunidades e coletividades. Interromper significa assim uma delonga que resiste à voragem da aceleração, ou um desvio à sequência antecipadamente traçada, ou uma fissura que altera irremediavelmente o sentido prévio do fluir.
Resgatar o tempo do seu fluxo mecanizado e uniformizado, é um desafio ambicioso, mas necessário, que se tornou ainda mais urgente com o deflagrar da pandemia e dos seus inúmeros e assimétricos impactos na vida comum. Resgatar o tempo pressupõe tomá-lo e moldá-lo com as nossas mãos, e dotá-lo de autonomia e de vontade própria, recusando as inevitabilidades da indústria e do mercado. É transformá-lo em política para todos.
Não cabe aqui esgotarmos os eixos que deveriam nortear a política do tempo, contudo enunciamos três princípios gerais que poderiam ser incrustados na conceção e ação das políticas públicas em várias escalas e domínios de intervenção. O primeiro tem a ver com a capacidade de projetar e de contruir nas várias áreas da existência um plano. Esta crise destapou um sem número de fragilidades sociais e económicas, incluindo a maior ou menor capacidade dos Estados e dos governos fazerem face a crises profundas e inesperadas.
Apesar de se ter assistido a respostas muito diferenciadas, umas mais capazes que outras, não resta grande dúvida sobre a necessidade de os governos centrais e locais incorporarem o plano como um instrumento imprescindível no seu roteiro de atuação. Não se trata de incutir a planificação das atividades por via de uma nova cultura burocrática, mas de incentivar a construção de planos que tracem horizontes previsíveis de futuro, constituídos por metas e objetivos a alcançar a partir de escolhas tomadas no presente. Escolhas essas alicerçadas no conhecimento científico e em processos democráticos de deliberação. E assim devolver, com significado, a dimensão de projeto ao tempo vivido.
O segundo eixo designamos de proteção. A possibilidade de projetarmos autonomamente futuros próprios, depende em grande medida da situação social e económica que se leva no presente. Se vivemos em presentes precários marcados pela constante incerteza e pela quase completa dependência aos fatores e às intempéries dos mercados, jamais teremos aptidão de criar projetos duráveis capazes de construir futuro. A manutenção da desproteção no presente é a melhor garantia para nos acomodarmos ao mero correr do fluxo, que nos transporta para um tempo sem rumo definido, inabitável. Proteger as pessoas nas várias esferas (do mundo laboral à sociedade do cuidar) é uma condição essencial para que o tempo tenha futuro.
O terceiro eixo, é permitir a singularidade do tempo. Apesar da importância de criar condições para a implementação de planos estes não podem esgotar todas as hipóteses de ação. Parte do nosso futuro deve ser imprevisível e aberto a possibilidades inesperadas que surjam, especialmente, de forças criativas e emancipatórias. Neste sentido, é fundamental dar espaço e tempo ao tempo, para que este aconteça sem imposições prévias e direções pré-estabelecidas. Uma política do tempo não deverá recuar ao primeiro obstáculo que interfira no plano delineado na base de intenções meritórias, democraticamente escrutinadas, mas deve, concomitantemente, permitir a abertura a singularidades não antecipáveis e potenciadoras de improbabilidades virtuosas.
Precisamos induzir previsibilidade no tempo, para que a incerteza não se torne ainda mais dominante nas nossas vidas, contudo é necessário dar alguma margem a desarrumações geradas por sentidos inesperados e únicos, que a prazo possam ter retorno na melhoria geral das condições de vida e do bem comum. Só assim se resistirá e se combaterá as várias ditaduras do tempo.
Renato Miguel do Carmo é co-autor do livro A Miséria do Tempo: Vidas Suspensas pelo Desemprego, Tinta-da-China, 2020.
André Barata é autor do livro E se Parássemos de Sobreviver: Pequeno Livro para Pensar e Agir contra a Ditadura do Tempo, Documenta, 2018.