Neste tempo de paragem de emergência, propomos uma série de reflexões sobre o tempo vivido nas suas dimensões sociais, económicas e existenciais.  Trata-se de um trabalho em progresso, necessariamente efémero e sem qualquer outra ambição que não seja a de aprofundar o questionamento crítico sobre o momento de crise que estamos a atravessar.

 

O sociólogo Hartmut Rosa publicou em 2013 um livro sobre a aceleração social referindo que se tratava da categoria dominante na modernidade tardia. A pressão da velocidade não só tomou conta de todas as esferas da sociedade e da economia como é por seu intermédio que organizamos a vida profissional e social. Aceleramos para produzir mais, de maneira a estabelecer mais contactos e ligações (offline e online), a aceder a mais informação, a estar sempre actualizado até à enésima notícia.

Aceleramos para acompanhar o momento imediato e até tentamos correr ainda mais para antecipar em breves segundos um acesso exclusivo, e a ilusão de uma soberania. A aceleração alimenta-se da competição e esta, por sua vez, promove-a. Este ciclo imparável tornou-se o motor da produtividade económica e do individualismo nas sociedades contemporâneas. Corremos desenfreadamente, mas estamos por nossa conta e risco.

Aceleramos, acelerámos tanto… que em muitos casos perdemos o fio condutor de tanto corrupio. Segundo o filósofo Byung-Chul Han, deixámos de ter um sentido da orientação, de projecto que enquadre e dê sentido a tanta velocidade. Essa é a tese principal do seu livro “O Aroma do Tempo”, publicado originariamente em 2009. Muito do nosso quotidiano alimentava-se de uma vertigem sem razão de ser, sem outro motivo que permanecer no regime acelerado, deambulando de um lado para o outro a responder a um sem número de exigências profissionais e de solicitações familiares e pessoais. Fomos de tal modo impelidos a correr desalmadamente que perdemos, simultaneamente, o controlo sobre o próprio tempo.

A ligação entre o trajecto passado e a construção de futuro desligou-se porque até certo ponto esfumou-se o sentido do rumo, condenando-nos ao império do presente. De certo modo, a aceleração desincrustou o tempo da nossa alçada enquanto indivíduos e transformou-o numa entidade externa de que não somos soberanos, a que, pelo contrário, cedemos o controlo e a soberania das nossas vidas. O tempo acelerado e fragmentado é, na verdade, um tempo que se desligou da humanidade e na experiência de cada um.

E é bom notar que estes fenómenos têm vindo a ser notados. Antes de Hartmut Rosa, já Paul Virilio, ainda nos anos 70, escrevia “Dromologia”, um estudo da velocidade nas nossas sociedades, que se ligava à substituição do real pelo virtual, e antes de Byung-Chul Han, já Richard Sennett, falava em “A Corrosão do Carácter” (1998), do impacto do capitalismo de curto prazo sobre os indivíduos e a sua capacidade de organizar um projecto de vida.

Aprendemos a sobreviver na velocidade e no, entanto, subitamente, de um momento para outro, somos coagidos a travar quase instantaneamente e a conter o tempo no confinamento do lar. Suspendemos o tempo e ocupámo-lo por uma espera forçada e incerta, que pode prolongar-se por meses. A delonga e a incerteza tomaram conta do quotidiano.  Esta temporalidade da paragem forçada e por tempo incerto era uma característica dominante de situações mais ou menos inesperadas como o desemprego, uma doença prolongada, o luto pelo falecimento de uma pessoa próxima.

Numa investigação recente, caracterizou-se a experiência social do desempregado como uma suspensão onde o tempo se afundava numa duração vazia e sem rumo definido. Para muitos desempregados o tempo flui por si e sem razão de ser.  O quotidiano vazio é adverso e rude, confinando a existência ao constrangimento do espaço doméstico onde não se tem nada ou muito pouco que fazer. A paragem forçada torna o tempo de tal modo excessivo que quase se perde a noção daquilo que se pode fazer com ele. Na paragem forçada, a abundância súbita do tempo torna dolorosamente evidente como é, na verdade, um tempo desligado das pessoas que o vivem.

Contudo, no tempo de emergência em que se vive actualmente, a paragem forçada está longe de significar um quotidiano vazio. Pelo contrário, como uma nova forma de horror ao vazio, o quotidiano é preenchido com teletrabalho e múltiplas actividades, e em que, forçosamente, todas confluem e se concentram no reduto do lar. O tempo de teletrabalho entremeado com tarefas domésticas e educativas estende-se ao limite das capacidades psicológicas: desde que acordamos até à noite em que já não conseguimos resistir ao último bocejo. Paramos no espaço, deixámos fisicamente de correr e continuamos a acelerar só que para lugar nenhum.

A aceleração sedentarizou-se na delonga da espera. Não cessámos de viver a angústia de apanhar o fluxo do tempo, mas agora prostrados no sofá e com um ecrã à frente. A sociedade do cansaço, como Byung-Chul Han descreveu, reencontrou-se dentro da casa de cada um, ainda mais obsessivamente, e mais atomizada.

Na verdade, não se produziu qualquer fissura no tempo do quotidiano, extenuado e preenchido até à exaustão, mas sem nos movermos. Todos os ritmos, de trabalho, lazer, doméstico, prazer concentram-se numa mesma morada, apenas a passos uns dos outros. A paragem confinada, por força do isolamento, condensa e reforça ainda mais a vivência da aceleração sem qualquer rumo ou propósito. Ela provoca uma espécie de híper-compressão do espaço-tempo.

Esta noção de compressão foi lançada por David Harvey, no final dos anos de 1980, para definir a condição pós-moderna assente no aumento exponencial da velocidade de circulação e de interconexão. Paradoxalmente, no actual contexto é a paragem e a clausura social que induzem uma compressão espácio-temporal acentuada e radical.  O resultado é uma experiência tão empobrecedora e confinada do tempo como a que, forçadamente, o confinamento físico confere ao espaço. Este duplo confinamento é como se à prisão domiciliária acrescentássemos uma prisão temporal.

Por outro lado, para quem continua a trabalhar lá fora, na rua, na produção, nas lojas e na distribuição que nos garantem a provisão de bens, nos serviços públicos de saúde e também de educação, na recolha do lixo, na entrega do correio, o risco sempre presente e eminente de ser contagiado coexiste com uma normalidade perturbada. Cavam-se assimetrias no mundo do trabalho ainda difíceis de perscrutar.

Desde logo, o aprofundamento das vulnerabilidades decorrentes do desemprego que atingiu as pessoas já descartadas das suas actividades profissionais.  Mas também esta nova desigualdade de emergência entre expostos e confinados, para todos forçada, mas vivida pelos primeiros com o risco acrescido que a necessidade do salário ou de cumprimento de função essencial à sociedade implica, para eles e para as suas famílias, mesmo se confinadas. A alternativa a não expor familiares ao risco é não o levar para casa escolhendo a auto-segregação, outro distanciamento físico e outro distanciamento social.

Como referiu recentemente David Harvey, a suspensão do tempo está, por ora, a vincar ainda mais as desigualdades laborais, que em certa medida são desigualdades de classe. São assimetrias e arritmias temporais em que suspensão e aceleração se cruzam num xadrez de matizes vividas quotidianamente. Apesar da grande paragem, muitos de nós, a sociedade em geral, continua a acelerar extenuadamente e sem uma orientação que dê sentido à vida que leva.

 

Renato Miguel do Carmo é co-autor do livro A Miséria do Tempo: Vidas Suspensas pelo Desemprego, Tinta-da-China, 2020.

André Barata é autor do livro E se Parássemos de Sobreviver: Pequeno Livro para Pensar e Agir contra a Ditadura do Tempo, Documenta, 2018.