Neste tempo de paragem de emergência, propomos uma série de reflexões sobre o tempo vivido nas suas dimensões sociais, económicas e existenciais.  Trata-se de um trabalho em progresso, necessariamente efémero e sem qualquer outra ambição que não seja a de aprofundar o questionamento crítico sobre o momento de crise que estamos a atravessar.

 

A globalização provocou profundas alterações na estrutura e no modo como se vive o espaço-tempo. Em grande medida assistiu-se a uma desterritorialização das relações sociais e das transações económico-financeiras. O tempo foi-se separando do espaço por via do uso crescente das tecnologias de comunicação e de informação que se tornaram em suportes fundamentais de mediação relacional. A interação direta com o outro deixou de estar dependente da copresença e da proximidade.

Como mostram, de forma intensificada, estes dias de contínuo confinamento, o espaço concreto parece que se tornou numa condição inexistente para as relações quotidianas com pessoas e grupos que se encontram nas mais díspares geografias. Aquilo que era até agora uma tendência – essa separação entre espaço e tempo – tornou-se, com o confinamento, numa necessidade.

Se, como vimos em textos anteriores, a construção de um tempo social contínuo e desligado dos acontecimentos subjuga os ritmos a uma única temporalidade hegemónica e abstrata, sincrónica e acelerada, como convém ao mercado global, deixando a cada indivíduo apenas uma experiência fragmentária do tempo, é preciso perceber que também o mesmo sucede com o espaço, e de forma particularmente intensificada no contexto do confinamento.

Um espaço homogéneo, sem fronteiras, instala-se globalmente e, no entanto, é vivido como espaço social que conserva e amplifica desigualdades, como bem o demonstram as desigualdades territoriais, designadamente do rural face ao urbano, ou do subúrbio face ao centro das cidades. Tanto um tempo como um espaço abstratos desligam-se dos seus equivalentes concretos, a pluralidade de temporalidades e de lugares, umas e outros abandonados, substituída por um espaço-tempo abstrato.

Entre os vários autores que tentaram apreender essas mudanças no que respeita ao espaço enuncia-se o contributo de Manuel Castells que, no início dos anos 2000, anunciava a emergência da sociedade em rede dominada pelos fluxos e circuitos de informação. O sociólogo estabelecia uma distinção entre o espaço dos fluxos, pelo qual correm aceleradamente múltiplas ligações informacionais produzidas e protagonizadas pelas classes mais qualificadas e cosmopolitas, e o espaço dos lugares, povoados principalmente pelas classes mais desfavorecidas exercendo atividades manuais pouco valorizadas em termos sociais e económicos.

Segundo esta ótica os lugares deixariam de ser espaços primordiais de relacionamento e de ação coletiva, tendendo a albergar os perdedores da globalização, transformando-se, desta feita, em guetos mais ou menos arredados da efervescência dos centros financeiros, económicos e culturais das metrópoles.

Com o decorrer das primeiras décadas do novo milénio, este anúncio sobre a morte dos lugares não só foi prematuro como, ao invés, se observou a sua persistência e importância na organização dos grupos sociais. Por exemplo, na anterior crise económica muitas praças e ruas foram apropriadas e ocupadas como espaços de protesto e de emancipação. Por exemplo, o movimento Occupy Wall Street, ou o movimento “okupa”.

De certa maneira, a mobilização coletiva travou os ímpetos para a desterritorialização das relações que marcavam a globalização e provocou uma curvatura no espaço-tempo. A ocupação modificava a própria realidade do espaço-tempo social. Na anterior recessão o espaço dos lugares foi essencial para ancorar a construção da resistência em arenas de participação política e cívica. A ação coletiva materializou-se no reforço da vivência da proximidade, do “estar com”, com os outros e até consigo próprio, de que o lugar é possibilidade.

Na presente crise, a quarentena despejou-nos repentinamente dos largos e das ruas. As pessoas recolheram-se voluntariamente e as cidades esvaziaram-se da sua agitação. De um momento para o outro deu-se um enorme curto-circuito que instigou uma dessincronização completa entre espaço e tempo. Subitamente deu-se a separação radical. Recolhemo-nos nas casas e apartamentos, interrompendo a maior parte das relações físicas que estabelecíamos regularmente.

A separação anunciada há décadas finalmente efetivou-se e de modo obrigatório. Fomos canalizados em aperto súbito, aos encontrões virtuais, para o espaço-tempo abstrato dos fluxos através do teletrabalho, da videoconferência, do e-learning… Multiplicam-se plataformas que antes desconhecíamos e agora confluem na vida doméstica justapondo-se, como camadas indiferenciadas, umas sobre as outras. O confinamento físico provocou simultaneamente um engarrafamento geral nas redes virtuais e digitais que se entrecruzam em incessantes movimentos. Levitamos sobre a materialidade dos lugares concretos num espaço de fluxos precários e entorpecidos.

Autores como David Harvey, salientaram que o problema fundamental da anulação dos territórios, foi o facto de estes terem sido alvo de um crescente processo de mercantilização e de especulação imobiliária, que se tornou num dos motores principais da produção de desigualdades. Entre outros fatores a mercantilização provocou a desincrustação dos lugares em relação às suas comunidades locais.

As fortes tendências de turistificação, ocorridas nos últimos anos em muitas cidades do mundo, representaram o exemplo claro dos efeitos da mercantilização do espaço que, por sua vez, o afastou irremediavelmente da vida das pessoas.

No seu importante livro, Karl Polanyi referia, logo nos anos 40 do século passado, que na transição do século XVIII para o século XIX ocorre uma grande transformação nas economias e nas sociedades, na qual se dá uma desincrustação (disembedding) em três elementos fundamentais (a terra, o trabalho e a moeda) que deixaram de estar embutidos no seio das instituições tradicionais. A desincrustação ocorre à medida que estes elementos se deslocam para a alçada dos mercados descontextualizados e se afastam irreversivelmente da vida comunitária e das relações interpessoais, precipitando estas para uma crescente massificação.

Mais de dois séculos depois, percebemos que este processo de desincrustação se radicalizou de tal maneira que nesta última fase do capitalismo neoliberal atingiu quase todos os elementos da vida social e económica. Talvez a sua expressão mais brutal se tenha revelado, precisamente, na atuação dessa força externa capaz de desincrustar os lugares do tempo quotidiano vivido nos bairros e nas comunidades.

O período que se avizinha de retoma não significará um mero regresso ao anterior. Na verdade, para o bem e para o mal, o anterior perdeu-se irremediavelmente na espuma da pandemia. Por isso, é importante refletirmos como se efetivará este retorno aos locais habituais e como iremos voltar a habitá-los.

Diríamos que o direito de habitação dos territórios se deve pautar pela reincrustação dos lugares no mundo da vida, dando corpo às suas temporalidades quotidianas. O direito a fazer lugares no espaço-tempo em vez de uma condição de passagem num espaço-tempo de fluxos, é uma reivindicação fundamental de interligação e de autonomia que resistem a fazer do humano uma entidade massificada e indiferenciada.

Por seu turno, torna-se relevante que os ritmos temporais dominantes cedam espaço à delonga das relações e das ligações sociais produzindo margem para as coletividades empreenderem na sua própria soberania do tempo. Milton Santos, geógrafo brasileiro, falava do tempo dos “homens lentos” como aquele que comandará o futuro das cidades. Os homens lentos vêm de fora das metrópoles e vivem nos seus imensos subúrbios, são os pobres que, vindos do campo, não têm outra alternativa senão suspender e guardar o seu tempo perante o rebuliço da cidade.

Neste nosso gradual regresso precisamos de incorporar o “homem lento” que recusa a inevitabilidade de abandonar os seus próprios lugares à monotemporalidade externa e acelerada do capitalismo da economia de mercado global e total. E para isso é preciso devolver o direito à temporalidade própria na experiência do tempo e o direito a fazer lugar na experiência do espaço. E assim devolver a inscrição recíproca, plural e livre do tempo e do espaço.

 

Renato Miguel do Carmo é co-autor do livro A Miséria do Tempo: Vidas Suspensas pelo Desemprego, Tinta-da-China, 2020.

André Barata é autor do livro E se Parássemos de Sobreviver: Pequeno Livro para Pensar e Agir contra a Ditadura do Tempo, Documenta, 2018.