Neste tempo de paragem de emergência, propomos uma série de reflexões sobre o tempo vivido nas suas dimensões sociais, económicas e existenciais. Trata-se de um trabalho em progresso, necessariamente efémero e sem qualquer outra ambição que não seja a de aprofundar o questionamento crítico sobre o momento de crise que estamos a atravessar.
Nestes tempos em que gradualmente vamos saindo da quarentena, tateando a textura áspera do mundo lá fora, tentamos reatar o social como se este tivesse hibernado dois meses e que a partir de agora começaria naturalmente a ressurgir nos hábitos e nos gestos do costume. Não fora a presença da máscara, das luvas, da respiração lenta e ofegante, dos desvios aos encontros físicos, das lentes permanentemente embaciadas, tudo aparentaria estarmos a caminhar para o tal novo normal, obstinadamente anunciado como uma profecia que se pretende autorrealizar.
Vivemos estes dias obcecadamente à procura de um presente estabilizador, como uma moldura que teima em suster e enquadrar os limites de uma pintura ainda a desenvolver-se. Esta obsessão com o presente desliga-nos ainda mais de outras temporalidades que não deixaram de condicionar o curso do tempo. Uma dessas temporalidades é a relação com o passado.
A crise provocada pela pandemia arredou-nos ainda mais do tempo passado. Poderíamos dar múltiplos exemplos, mas o mais brutal expressa-se no modo como se passou a viver, ou melhor, a não viver, a morte. Num dos artigos anteriores desta série alertámos para o facto de esta crise nos estar a matar para a morte. O que de certa maneira significa estar a matar o nosso passado.
A memória deixou de poder ser partilhada vivencial e coletivamente em interação de uns e de outros nas cerimónias e rituais habituais. O passado pessoal foi remetido para um silêncio profundo. A pandemia cravou-lhe uma mordaça, um isolamento social e temporal ainda mais absoluto que a própria quarentena. Este esvaziamento do passado é simultaneamente preenchido e substituído pela necessidade acutilante de se instituir urgentemente um presente seguro, alicerçado no previsível e na reversibilidade das gestualidades e das ações.
O contínuo olvidar do tempo passado, dos seus enrugamentos e imperfeições, não só vem de trás, como tem sido uma das armas fundamentais da propagação da economia de mercado que tende a transformar todas as formas temporais numa entidade abstrata, linear e plana, desligada da vida comum, das pessoas que a vivem, da sua capacidade de fazerem memória.
O esvaziamento do passado desfavorece-nos enquanto sujeitos cuja individualidade se torna ainda mais redutora e acéfala, desfavorece-nos enquanto coletividade na medida em que perdemos memória comum, mas, em contrapartida, favorece enormemente aqueles que ganham cumulativamente com a engrenagem do capitalismo neoliberal. Ou, dito de outra maneira, a invisibilização do passado favorece a temporalidade da herança que, em grande medida, é a temporalidade da desigualdade.
Thomas Piketty foi o autor que mais brilhantemente demonstrou o peso determinante da herança dos recursos económicos na reprodução das desigualdades. O seu enfoque analítico nas séries estatísticas longas, até onde os dados permitem ir, demonstra que a rentabilidade crescente do capital aprofunda para níveis impensáveis a repartição desigual da riqueza e do rendimento. As desigualdades sociais reproduzem-se pela calada, afastadas do espaço público, altamente mediatizado, e desfasadas da vida quotidiana. A sua temporalidade, apesar de invisível, como se fosse clandestina, continua a ser determinante na composição das estruturas sociais, dominadas pelo curso do tempo longo.
Paradoxalmente o passado que se esfuma no presente é, simultaneamente, o grande condicionador do rumo das sociedades e limitador das oportunidades de vida individuais. Fazer-se esquecer o passado é assim uma condição imperiosa para o tornar ainda mais poderoso nas consequências assimétricas que produz, de modo a beneficiar sem limite uma classe híper-privilegiada em detrimento de todas as outras.
Neste sentido, lutar contra as desigualdades é também uma luta contra a temporalidade dominante que ofusca a viscosidade e a porosidade do passado transformando-o, por oposição, numa enorme abstração cada vez mais asséptica. Um passado mecânico, sem memória e destituído de vida, cuja função única se expressa na reprodução e amplificação das assimetrias. Combater as desigualdades passa, antes de mais, por dar espessura a esse passado.
Projetos como o World Inequality Database representam um contributo inestimável em atribuir forma às tendências crescentes de acumulação económica e financeira. Nos múltiplos gráficos disponibilizados, que se desdobram em diferentes indicadores de desigualdade, as linhas que sobem exponencialmente para os 10% ou os 1% mais ricos têm como contraposição as que descem ou estagnam para os restantes escalões de rendimento ou de riqueza. Estas representações bidimensionais dão corpo aos efeitos cumulativos que vincam as desigualdades entre os que herdam muito, os que herdam pouco e os deserdados.
As linhas que ao longo das últimas décadas disparam no topo e aplanam ou decrescem na base revelam a força motriz do passado que condiciona os padrões de vida presentes e as oportunidades futuras.
É uma incógnita saber qual o impacto da crise da pandemia na evolução a prazo dessas linhas. Todavia, já é possível tirar-se algumas ilações sobre o seu impacto imediato nos vários tipos desigualdade. Como revela um estudo recente, a primeira constatação revela-nos que a crise está a reforçar a maior parte das desigualdades e vulnerabilidades anteriores.
Por exemplo, ao nível do mercado de trabalho parte dos que já se encontravam numa situação contratual precária foram os que conheceram quase automaticamente o desemprego e/ou a redução de rendimento. A este respeito a condição dos trabalhadores mais jovens é particularmente preocupante na medida em que a precariedade incide mais neste grupo.
Por sua vez, a crise está a produzir novas desigualdades. A imposição do confinamento e a transição para o teletrabalho exponenciou as desigualdades decorrentes das condições de habitabilidade e do acesso à internet. Agregados familiares mais pobres encontram-se numa situação mais aflitiva onde se torna quase impossível gerir e conciliar adequadamente as múltiplas exigências do teletrabalho, da telescola, das tarefas domésticas, etc. Mas também se exacerbaram as desigualdades tradicionais como as de género, verificando-se que na experiência da quarentena a mulher é ainda mais desfavorecida e sobrecarregada, sobretudo se tiver filhos a cargo.
Simultaneamente, é preocupante o que está a ocorrer ao nível das desigualdades étnico-raciais em múltiplas dimensões. No seio do grande confinamento ressurgiram e intensificaram-se múltiplos confinamentos sociais e culturais que persistiam anteriormente.
Assim, se no imediato diversas desigualdades despontam com enorme força, seria importante que no tempo mais longo estas fossem fraquejando e perdendo o poder de se reproduzirem exponencialmente. Vários autores como Joseph Stiglitz ou Anthony Atkinson salientaram que as desigualdades não são uma inevitabilidade natural, pelo contrário, estas resultam em grande parte de posicionamentos ideológicos e de decisões políticas que em várias esferas da governação instauraram consecutivamente medidas promotoras de desigualdade social e económica.
Numa entrevista sobre o seu último livro Piketty sublinha precisamente o papel e a importância da política e da ideologia como um campo de batalha, também ele desigual, do qual resultam decisões e atuações com consequências determinantes na reprodução das desigualdades.
Num certo sentido, não há aqui grande novidade, Marx explicou, quase dois séculos volvidos, que nas economias capitalistas o peso reprodutor da herança sempre foi justificado e legitimado por narrativas fundadas no campo da batalha ideológica e das ideias onde as classes privilegiadas detêm uma preponderância avassaladora. Tal como, era muito claro para o autor germânico, que só a ação política e social poderia impulsionar uma transformação profunda do capitalismo e das estruturas sociais vigentes.
Num livro publicado em 2016, Branko Milanovic, identifica de forma sistemática um conjunto de forças malignas e benignas que ao longo da história têm contribuído para a redução da desigualdade. As primeiras são, entre outras, as guerras, os conflitos civis e as pandemias, as segundas advêm principalmente das políticas de proteção social e de regulação laboral, da ação dos sindicatos e dos partidos progressistas, e dos sistemas públicos de saúde e de educação.
O período mais recente da história onde ocorreu uma redução significativa da desigualdade foi o que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, no qual se generalizaram em muitos países políticas sociais e redistributivas consistentes. Neste caso as forças benignas aprofundaram as tendências induzidas pelas malignas.
É ainda cedo para perceber se a pandemia de Covid-19 terá algum impacto na redução das desigualdades de rendimento e de riqueza. Os dados que temos até agora parecem afastar-nos dessa hipótese. Contudo, independentemente disso é fundamental que as forças benignas tomem as rédeas do rumo da história e não se prendam em hesitações ideológicas ou em recortes políticos mais ou menos táticos.
Tomar as rédeas significa compreender e ter resposta à altura da situação inédita com que a pandemia nos confrontou. Nesse sentido, três ideias importa sublinhar. Primeiro, a destruição acelerada de igualdade social provocada pelo contexto de calamidade desafia a morosidade da construção da igualdade. Políticas igualitárias mais céleres devem ser implementadas.
Em segundo lugar, a calamidade de saúde pública imbrica-se de forma profunda com calamidade social e económica, concentrando desigualdades ao mesmo tempo que amplifica cada uma. A desigualdade de rendimento logo repercutida em desigualdade na proteção e na contenção do risco do contágio, a precariedade logo repercutida em perda de rendimento. Políticas igualitárias eficazes devem, no presente contexto, não permitir esta colagem e efeito de redobramento das desigualdades.
Finalmente, mas não menos importante, até pelas duas razões precedentes, é fundamental que o carácter exógeno, ou parcialmente exógeno, a fatores humanos da causa da crise social não diminua a responsabilidade por uma resposta igualitária determinada.
É altura da política e das instituições democráticas enfrentarem as profundas temporalidades (re)produtoras da desigualdade. O nosso passado tem de se libertar de vez da coerção da herança para que o novo normal que aí vem nos lance numa trajetória de prosperidade e de oportunidades.
Renato Miguel do Carmo é co-autor do livro A Miséria do Tempo: Vidas Suspensas pelo Desemprego, Tinta-da-China, 2020.
André Barata é autor do livro E se Parássemos de Sobreviver: Pequeno Livro para Pensar e Agir contra a Ditadura do Tempo, Documenta, 2018.