Neste tempo de paragem de emergência, propomos uma série de reflexões sobre o tempo vivido nas suas dimensões sociais, económicas e existenciais.  Trata-se de um trabalho em progresso, necessariamente efémero e sem qualquer outra ambição que não seja a de aprofundar o questionamento crítico sobre o momento de crise que estamos a atravessar.

 

Para a economia feminista, é crucial fazer uma distinção entre trabalho produtivo e trabalho reprodutivo. Por exemplo, entre aquele em que se sai de casa para uma fábrica ou escritório e aquele em que se fica em casa a arrumá-la, a cozinhar refeições, passar camisas, mudar de fraldas, etc.

O primeiro é assalariado, envolvendo por regra um contrato de trabalho e sujeita-se a regulação que pelo menos limita a exploração do trabalhador. Já a segunda espécie de atividade é também trabalho, mas não envolve salário nem nenhum tipo de contratualização. Chama-se reprodutivo porque nele está em causa restaurar as forças e a capacidade de produzir. Historicamente, o primeiro coube aos homens e o segundo às mulheres. E mesmo quando as mulheres entraram no mercado de trabalho, a tendência foi acumularem os dois.

Por outro lado, antes ou depois da chegada das mulheres ao mercado de trabalho, o trabalho reprodutivo foi mantido sempre numa posição subalterna, secundária. Ao que não é indiferente a sua condição não remunerada. Não se valoriza o que não se quer pago. Mas também por uma espécie de naturalização desse trabalho. Como se fosse uma continuidade da própria respiração, do viver.

Ninguém cobra por respirar. Contudo, pela inação cobra-se, nem que seja na forma de sentimentos de culpa por não se estar a fazer nada. Daí vermos o tempo do lazer, que sobra cada vez menos, a ser ainda aproveitado para passar a ferro enquanto se vê televisão ou no tempo reprodutivo não se sair da corrida e ouvir um podcast enquanto se estende a roupa. E esta é uma condição vivida sobretudo pelas mulheres.

A economia feminista denuncia esta assimetria, apenas mais uma das muitas formas por que vai prosseguindo a desigualdade de género. Mas, além disso, em vez de se conformar à supremacia do trabalho da produção, a economia feminista defende a importância de conferir centralidade ao trabalho reprodutivo, reconhecendo-o como trabalho e estabelecendo-o como referência para uma mudança de paradigma.

Disseminar uma cultura de cuidado nas relações laborais e na intervenção humana sobre o mundo, em vez de considerar que o trabalho relacional e de cuidado apenas se aplica ao interior privado da casa enquanto lá fora prossegue a selva da competição e do salve-se quem puder.

Contudo, agora que o confinamento obrigou todos os ritmos a apertarem-se, cotovelo contra cotovelo, como numa carruagem de metro em hora de ponta, é exatamente o oposto que está a suceder. Não é o tempo do cuidado, atento aos ciclos naturais, do dia e da noite, da vigília e do sono, que sai de casa ao encontro da comunidade e da sociedade, como defende a economia feminista, mas é o tempo da aceleração, da produção ansiosa por mais produtividade, a entrar nas casas, a obcecar-nos como uma questão de vida ou de morte, de sobrevivência, devidamente condimentada por medos que induzem todos os consentimentos.

São o teletrabalho, a telescola, a tele-universidade, a telecidadania, primeiro por obrigação de confinamento, mas depois, apresentados como oportunidades sedutoras, por aceitação pouco crítica. Para a era industrial desmaterializada que estamos a viver, são só vantagens de facto, pelo que não é difícil negociar algumas. Talvez se estranhe por que se fala de indústria, mas, como bem diziam Daniel Bell e Herbert Marcuse, não é preciso nenhuma fábrica para que haja uma indústria. É apenas preciso que a produção seja concebida como corrida contra o tempo. É precisamente o caso em que nos encontramos.

O confinamento parece induzir um colapso da diferença entre tempos, mas realmente o que suscita é uma preponderância do tempo produtivo sobre os outros ritmos. Mais do que um colapso, este sobreconfinamento exprime uma colonização uniformizadora de todos os tempos pelo tempo da aceleração que já era tendência preocupante da modernidade tardia, com consequências sociais e políticas muito sérias. Pelo menos três devem ser explicitadas.

Primeiro, levado o trabalho produtivo para casa, a desigualdade social encontra mais uma forma de cavar exclusões, deixar menos pessoas no comboio das oportunidades e apear todas as outras. Que instância avalia as condições de trabalho em casa? Uma desigualdade invisível é mais propícia ao descomprometimento do ponto de vista das políticas sociais.

Segundo, em termos de cidadania, a concentração dos vários tempos e ritmos, todos modelados pela racionalidade do da produção, acaba com a possibilidade de um tempo de liberdade, improdutivo, em casa. Jacques Rancière bem expunha que talvez, mais do que greves e outras ações em que os proletários faziam o que deles se esperaria em termos de protesto e luta por direitos, o momento de poderosa experiência de igualdade era quando, no lusco-fusco, descansando para recuperar forças para o dia seguinte se gozavam, ao mesmo tempo, possibilidades de realização estética.

Na noite dos proletários, a igualdade irrompia sem peias. Simplesmente, as noites já não são as mesmas. A noite dos precários do nosso tempo apenas resulta, depois da produção, na exaustão, o burnout ou uma condição vegetativa de inação, em que os ecrãs de trabalho dão lugar ao da televisão. A possibilidade da fissura noturna desaparece. Não há melhor sintoma disso do que o modo como se normalizou o trabalho por turnos, que não fazem diferença entre o dia e a noite.

O confinamento dos ritmos a que nos conduzimos socialmente como resposta à pandemia explora até às últimas consequências, como se fosse uma experiência de laboratório, esta organização sem fugas do tempo do rendimento.

Terceiro, este querido “stay home, stay safe” que não nos cansámos de repetir semanas a fio, exige-nos a capacidade de fazer dele uma leitura política crítica: erradicar o encontro, a comparência junto de outros, face a face, é um golpe fundo no espaço público e uma oportunidade de ouro para o controlo político. Os nossos filhos estão em telescola por conta de uma pandemia, mas, por vontade política, também estariam em telescola se as ideias de Bolsonaro e do movimento Escola sem partido vingassem. Naturalmente, as razões são diferentes, mas isso não torna os efeitos diferentes.

O confinamento, que o uso da máscara já bem simboliza, é o aliado perfeito da ligação permanente a dispositivos em rede, rastreáveis. A realização perfeita do panóptico está no horizonte das possibilidades de um qualquer poder político que encontre a vontade e as condições políticas autoritárias para o efetivar: uma estrutura desmaterializada, e por isso ubíqua, que chega às casas de todos sem que possamos sair das casas. Basta pô-la a funcionar.

A invasão das casas pelo ritmo produtivo, comprimindo todos os outros, é um severo retrocesso numa agenda de emancipação social, incrementando desigualdades invisíveis e vidas oprimidas. Mas, na medida em que o confinamento é também uma evasão dos lugares públicos e do encontro neles, é um progresso colossal, e ainda pouco apercebido, da instalação das condições para uma distopia política.

É importante que o desconfinamento físico agora a acontecer seja simultaneamente um desconfinamento do cuidado. Contudo, o cuidar não pode ser transformado em mercadoria, nem uma sociedade do cuidar deve ser a ocasião para o ressurgimento de lógicas familialistas ou assistencialistas. Acima de tudo, uma sociedade do cuidar significa recentrar o trabalho como um bem comum dirigido ao bem-estar de todos. Ou, dito de outro modo, é fundamental retirar a indústria, e também o patriarcado, da fábrica das relações do cuidar.

 

André Barata é autor do livro E se Parássemos de Sobreviver: Pequeno Livro para Pensar e Agir contra a Ditadura do Tempo, Documenta, 2018.

Renato Miguel do Carmo é co-autor do livro A Miséria do Tempo: Vidas Suspensas pelo Desemprego, Tinta-da-China, 2020.