É sempre a mesma coisa. À medida que se aproxima um “acto eleitoral”, os líderes partidários, os comentadores políticos, o Presidente da República e os mais variados evangelizadores da cidadania dirigem-se à multidão para a exortar a votar, a “não ficar em casa” e a não cair na abstenção, porque o voto, “para além de um direito”, é “um dever”.

Há uns anos, Cavaco Silva, num daqueles momentos de entusiasmo moralista que periodicamente o assaltavam, chegou a dizer que só quem vota tem depois legitimidade para criticar os políticos eleitos. Confesso que poucas coisas me incomodam mais que esta conversa.

Por que razão é que alguém que, por exemplo, votou num partido ou candidato que concorreu a uma eleição com um programa repleto de medidas irrealizáveis ou nocivas, e que, com esse voto, deu a sua caução a essas mesmas medidas, tem mais legitimidade que alguém que se absteve por considerar que nenhum partido ou candidato se apresentava com um programa realista ou benéfico?

Por que razão é que a pessoa que votou num determinado programa tem mais legitimidade para criticar os efeitos nocivos do seu cumprimento, do que alguém que desde o início nunca acreditou no seu conteúdo fraudulento? Por que é que,  por exemplo, alguém que tenha votado no PS em 2015 tem mais legitimidade para criticar o seu governo do que alguém que se absteve por achar que nem Costa nem nenhum dos seus opositores desempenharia o cargo de uma forma que considerasse positiva para o país?

Por que é que quem cauciona o que depois critica tem mais legitimidade para o fazer do que quem à partida não quis dar o seu aval ao que mais tarde outros passaram a criticar?

Segundo os nossos Cíceros de vão de escada, o exercício do “dever” de votar constitui aquilo que de mais nobre um cidadão pode fazer numa democracia, e dispensar esse exercício mostra o carácter pouco virtuoso do autor de semelhante escolha. Pessoalmente, não pretendo negar que a participação cívica seja uma virtude. Mas não só me custa a aceitar que seja a única ou até a mais alta, como tenho sérias reservas em relação à ideia de que a participação cívica passa forçosamente pelo voto.

Não me esqueço que a escolha de não votar é uma escolha tão legítima como a inversa, e que pode até resultar de tanta ou maior reflexão sobre a vida política do país do que a que leva alguém a ir colocar uma cruzinha num quadrado no boletim de voto.

É claro que há eleições (as legislativas de 2009, as presidenciais americanas de 2016) em que não votar em ninguém me parece um erro de avaliação da situação. Há eleições em que está algo de tão importante em questão que nem as reservas que se possam sentir em relação a um candidato ou outro devem impedir alguém de ir votar contra a ameaça representada por um deles em particular (Sócrates em 2009, Trump em 2016).

Mas mesmo nesses casos, quem se abstém pode perfeitamente fazê-lo porque avaliou os candidatos e fez um julgamento diferente do meu, e entendeu que nenhum merecia o seu apoio. E aí é que está o problema: grande parte da abstenção deve-se, não a uma falta de “cidadania” de quem fica em casa, mas à falta de confiança que quem pede votos consegue gerar no eleitorado.

Não ignoro que há muita abstenção de quem não opta pela abstenção mas está em abstenção, de quem se escusa diária e permanentemente a prestar a mínima atenção aos amores e desamores de António e Catarina ou à intermitente relação de Rui Rio com as exigências da ética. Mas haverá também muita gente que se abstém precisamente porque dedica o seu tempo a ouvir o que a Dra. Cristas finge ter para dizer, ou a prestar atenção ao “pensamento” político de grandes figuras da Nação como Carlos César ou o Dr. Malheiro. Gente que não só se “preocupa com o país” (uma actividade que conduz fatalmente ao desespero e à frustração), como “pensou” sobre alguns dos problemas que o afectam, e apenas acha que nenhum dos partidos oferece soluções satisfatórias.

Esses casos mostram algo que os nossos moralistas do voto tendem a querer esquecer: que a abstenção não é forçosamente um mal, e que o mal está no que a motiva, cuja responsabilidade reside em quem prega os infundados sermões contra ela.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.