A questão do veto ao Fundo de Recuperação, pela Hungria e Polónia, com o apoio da Eslováquia, devido ao mecanismo de salvaguarda do Estado de direito, corre o risco de se tornar o ponto fulcral da presidência portuguesa face às consequências imprevisíveis do prolongamento do referido veto.

Nas entrelinhas da questão política, e se é que é possível resumir de forma simples a questão, podemos considerar as palavras do primeiro-ministro eslovaco, que defende que apenas um órgão judicial tem competência para dizer o que é ou não um Estado de direito, e não uma maioria política. Ora, a questão é política e não judicial. Ninguém contesta a legitimidade dos governos eleitos dos países que apoiam o veto ao Fundo de Recuperação. O que está em causa é tão somente o respeito pelo Estado de direito.

A Europa não pode ficar refém do bloqueio político dos países que não respeitam os fundamentos essenciais do projecto político europeu. Pertencer à UE (União Europeia) é sinónimo da prevalência absoluta do Estado de direito e como se sabe, nas questões de princípios políticos, não há nem pode haver negociação possível.

A aceitação política da pretensão da Polónia e Hungria significaria a abertura de um perigoso precedente de consequências imprevisíveis. Recorde-se, a propósito, que aqueles países continuam a ser investigados, pela UE, por interferências no poder judicial e por ameaças à liberdade de expressão e perseguição (a jornalistas, refugiados e minorias). Jamais poderá haver negociação nesta e noutras matérias. Ou seja, ou os países que promovem o bloqueio levantam o seu veto ou rapidamente tem que ser encontrada uma solução política.

O orçamento europeu, embora possa funcionar por duodécimos, na prática torna-se impraticável e, para Portugal, que necessita urgentemente dos fundos europeus, a situação ainda mais grave se torna no momento em que nossa divida bate o recorde de 140% (em percentagem do PIB).

Curiosamente, os países que promovem o bloqueio defendem-se alegando que a UE deve aceitar a diversidade dos sistemas jurídicos e as tradições dos mesmos. Ora, perseguir o poder judicial e a liberdade de imprensa jamais poderá ser analisada sob o prisma da diversidade, mas sim da falta de respeito e ameaça ao poder judicial.

Dos três grandes desafios que hoje preocupam a Europa (Brexit, pandemia, mecanismo de salvaguarda do Estado de direito), o veto ao Fundo de Recuperação é aquele para o qual as negociações estão mais atrasadas. Paradoxalmente, conseguiu-se chegar a um entendimento sobre os montantes a atribuir a cada país e agora corre-se o risco de bloqueio do Fundo de Recuperação devido ao veto da Polónia e Hungria.

A Europa, num contexto de profunda complexidade política pós-Brexit e em plena pandemia, carece de um indispensável e permanente diálogo entre as instituições europeias e a sociedade, no sentido de aprofundar a construção europeia, mas tal não pode ser feito a todo o custo.

À incerteza vinda de Leste, a Europa, leia-se presidência portuguesa, a quem compete liderar as negociações para desbloquear o veto, terá que responder com diálogo enquanto este for possível e dentro dos limites políticos que não violem o mecanismo de salvaguarda do Estado de direito. Quando o diálogo e o respectivo prazo se esgotarem, virá o tempo das decisões políticas. Prolongar a ameaça de Leste enfraquecerá a Europa e marcará um recuo da construção europeia.

Após todas as tentativas falhadas de apelo à retirada do veto por parte da Hungria e Polónia, nomeadamente por Merkel, Macron, Gentiloni e Beaune, caberá agora à presidência portuguesa fazer o derradeiro esforço de concertação política e económica.

Embora não se conheça o conteúdo das actas das reuniões preparatórias do Conselho da UE, Portugal parte duma posição frágil, na quase impossível missão de procurar convergência de posições e chegar a um compromisso, dado haver sinais que a posição de Portugal não foi clara nas reuniões de Maio e Novembro de 2018, havendo até quem afirme que Portugal foi crítico da medida de ligação entre o Estado de direito e o orçamento.

Em suma, a Europa não pode ceder à chantagem dos governos da Polónia e da Hungria, nem pode ser um “clube” de países que apenas partilha legislação, preocupações ambientais e liberdade de circulação. Tem que ser o lugar da democracia plena e da liberdade.

A questão de vincular a disponibilidade de verbas europeias ao respeito pela democracia e salvaguarda do Estado de direito é, portanto, inegociável. Muito se fala sobre o futuro da Europa, mais verde, mais coesa e mais sustentável. Convém, pois, acrescentar mais uma dimensão: a de ser sempre politicamente decente, também.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.