Apesar das críticas recentes, os processos de planeamento e controlo orçamental, tipicamente com periodicidade anual, constituem-se ainda como a rotina de controlo de gestão mais comum e visível nas organizações.

O orçamento serve múltiplos propósitos, dos quais se destacam o planeamento e coordenação das atividades que suportam a tomada de decisão na alocação de recursos e consequentes decisões de investimento, a autorização de despesas (pela imposição de limites orçamentais), bem como a motivação e responsabilização dos gestores. Contudo, é exatamente esta multiplicidade de fins que se transforma numa das maiores fraquezas da ferramenta orçamental, dado o potencial carácter conflituante entre os mesmos.

Se, no contexto dos processos de planeamento, é natural que seja adotada uma postura mais conservadora (as decisões de alocação de recursos escassos são frequentemente de difícil reversão, exigindo especial prudência), no contexto motivacional os gestores tendem a definir metas otimistas, com o intuito de criar a “pressão” de desempenho necessária ao cumprimento dos objetivos.

Em síntese, recorrendo a um conhecido provérbio português, queremos que o orçamento represente em simultâneo as possibilidades de “sol na eira” (otimismo, função motivacional) e “chuva no nabal” (conservadorismo, função de planeamento).

Pela definição de limites de despesa, o orçamento funciona também como um mecanismo de controlo das ações dos gestores, o que origina frequentemente enviesamentos comportamentais do tipo on the budget (a execução orçamental é concretizada até ao limite da meta orçamental, mesmo que, no contexto real, face à evolução da envolvente, tal possa já não se justificar), tanto mais que a sub-execução conduz normalmente à redução da meta do período seguinte.

Este evidente conflito de propósitos tende a ser resolvido ou atenuado por duas vias alternativas: separar totalmente a função de planeamento da função motivacional (por exemplo, sendo esta última ligada ao cumprimento de metas de longo prazo) ou definindo e comunicando seletivamente diferentes versões das metas, passando assim a coexistir não um, mas vários orçamentos.

É exatamente este conflito de funções dos orçamentos que ajuda a perceber a discussão política do Orçamento de Estado em Portugal.

Por um lado, a fixação de metas de receita e despesa cumpre propósitos análogos aos “motivacionais” (otimismo, “sol na eira”): não só se procura evidenciar um cenário macroeconómico que faça aumentar a reputação da nossa economia e consequente confiança dos agentes económicos e das instituições (“pela primeira vez em democracia, temos um orçamento de estado com superavit”), mas também se procura dar resposta aos interesses conflituantes dos diferentes stakeholders envolvidos: ministérios, partidos políticos, organizações sindicais e patronais, etc.

Por outro lado, funcionando o Orçamento de Estado como mecanismo de delegação de responsabilidade e sendo premente o risco de comportamentos on the budget, o recurso a mecanismos de cativação de despesa, com centralização de tomada de decisão no Ministério das Finanças, constitui-se como um contrapeso conservador de execução da despesa com o objetivo evidente de garantir que o otimismo subjacente ao cenário orçamental não se traduz na tal “chuva no nabal”.

Neste caso, torna-se assim evidente a coexistência de duas “versões” orçamentais: a versão aprovada, otimista nas receitas e nas despesas (num jogo de escolhas que procura responder politicamente aos diferentes interesses) e uma outra mais conservadora, a priori com um menor patamar assumido de despesa, gerida através da adoção de mecanismos de limitação na execução (cativações), o que permite que seja atingido o saldo orçamental anunciado[1].

 

[1] No Orçamento de Estado de 2020 apresentado no parlamento, a despesa aprovada assumida a priori como não executável (via cativações) atinge 590 milhões de euros, justificando assim a estimativa de excedente orçamental de 0,2%