A recente decisão governamental de permitir a construção em solos rústicos em Portugal é preocupante. Estes terrenos, pelas suas características naturais, são essenciais para diversas funções como a agricultura, a preservação de recursos naturais e o lazer. A sua destruição pode acarretar consequências irreparáveis para o equilíbrio ambiental e para a sociedade em geral, sem resolver o problema da habitação.
Os solos rústicos, por definição, não devem ser urbanizados. São recursos naturais insubstituíveis, cuja formação requer séculos. Num contexto global marcado pela crise climática e pela ameaça de extinção de solos produtivos, esta decisão contradiz as recomendações de especialistas que procuram preservar e restaurar os solos, sob pena de esgotarmos a terra útil para produzir alimentos. Portugal, aliás, está obrigado a promover o restauro ecológico de 20% dos ecossistemas degradados até 2030 (e todos até 2050), inclusivamente de solos rústicos degradados.
O solo é um recurso não renovável à escala humana. Mais de metade dos solos agrícolas mundiais já estão degradados, o que compromete a segurança alimentar de uma população global crescente. Em Portugal, mais de 54% dos terrenos agrícolas apresentam baixos níveis de matéria orgânica, sendo que as zonas do interior do país estão particularmente vulneráveis. A Comissão Europeia, por exemplo, promove metas como “zero tomada de terra até 2050” e incentiva práticas de gestão sustentável do solo – e Portugal deve seguir este exemplo.
A construção em solos rústicos não destrói apenas estes terrenos, mas também requer a criação de infraestruturas complementares, como redes viárias e sistemas de saneamento, agravando o impacto ambiental. Adicionalmente, colocar decisões estratégicas sobre onde e o que construir nestes solos nas mãos de cada município é retirar coerência às políticas de ordenamento do território que procuram assegurar coesão territorial e conter a dispersão urbana.
É compreensível a urgência em resolver a crise habitacional – mas a construção em solos rústicos não é a solução. O problema da habitação em Portugal não resulta da falta de terrenos para construção: há muitos terrenos classificados como urbanizados que não acolhem ainda qualquer infraestrutura.
Como já inúmeros especialistas têm apontado, o problema resulta de um mercado disfuncional, em que há um elevado número de habitações construídas que não estão disponíveis para venda ou arrendamento. Uma política fiscal que incentive a disponibilização no mercado destas habitações seria mais eficaz do que a construção que expande e dispersa a malha urbana, destruindo solos. Além disto, esta medida irá demorar vários anos a ter impacto no mercado, contribuindo adicionalmente para a especulação dos preços de terrenos em solo rústico.
São crescentes as vozes contra esta medida: sucedem-se as cartas abertas ao governo de investigadores, ambientalistas e outras vozes da sociedade civil; os artigos de opinião críticos que destapam as implicações ambientais, de governança (maior suscetibilidade a corrupção nas autarquias) e económicas (especulação imobiliária) desta medida; e a mobilização de deputados para que haja apreciação parlamentar deste diploma do governo.
Esperamos que o governo consiga rapidamente reconhecer o passo em falso, aposte em medidas que promovam a recuperação dos solos degradados e sejam eficazes a disponibilizar habitação no mercado sem agravar os já graves problemas de ordenamento do território do nosso país.