No meio da tragédia que é o conflito da Ucrânia julgo que há, apesar de tudo, motivos para agradecer ao Presidente Putin.
Enfatizo a expressão tragédia porque assumo um enorme pessimismo perante as consequências geoestratégicas deste conflito, devido ao momento da liderança russa e à sua propensão para o desequilíbrio, violência e, sobretudo, tendência para a fuga em frente.
No entanto, considero que, como forma de extrair ilações construtivas de uma desgraça, importa aqui fazer alguns agradecimentos.
É de agradecer a confirmação prática, para quem ainda tinha dúvidas, da unidade nacional, da vontade de independência da Ucrânia e da vontade do seu povo em seguir um caminho de liberdade e democracia.
É de agradecer ter mostrado às pacíficas populações europeias o quão frágil pode ser a paz e a estabilidade em que vivemos e que a única forma de manter essa paz, liberdades e democracia é manter sempre uma atitude de permanente vigilância.
É de agradecer o facto de ter contribuído para a unidade europeia e para o que será a profunda mudança estratégica nas políticas europeias de energia e de defesa. No caso da política energética, até pode ser que tenhamos de vir a agradecer ao Sr. Putin por ajudar aos interesses portugueses no reforço do seu papel como ponto de entrada de abastecimento de gás natural liquefeito para a Europa.
É de agradecer ainda ter acabado com a tendência de alguns países europeus para soluções negociadas que privilegiavam o statu quo económico em detrimento dos interesses de países independentes e ao arrepio do direito internacional, como sucedeu com o conflito na Geórgia e a ocupação da Crimeia.
É de agradecer ter acordado a Europa e, de certa forma, o mundo para a perniciosa máquina de propaganda russa, que não só promove falsamente os interesses russos como trabalha arduamente para espalhar a desinformação e a dissensão em vários países.
É de agradecer ter confirmado a viabilidade e a coesão da NATO por ter aproximado o eixo anglo-saxónico dos restantes países europeus. Muito provavelmente teremos, num futuro próximo, vários países a solicitar a sua adesão à organização.
É de agradecer ter confirmado tudo o que os EUA informaram sobre as intenções russas, contribuindo para restaurar parte da credibilidade perdida com a anterior administração norte-americana.
É de agradecer ter acabado com o seu próprio mito, que a máquina de propaganda russa tão laboriosamente ajudou a criar. O mito do líder autoritário mas racional e confiável, alguém com quem se poderia trabalhar desde que se respeitassem os interesses russos.
É de agradecer ter mostrado ao mundo a arte da mentira e do engano na política internacional, bem como o total desrespeito pela ordem jurídica internacional e pelos organismos que a representam.
É de agradecer também a indireta identificação dos poucos países – cada vez mais párias da comunidade internacional – que constituem no fundo, o núcleo que o apoiou, direta ou indiretamente, nesta situação. Com grande pena minha incluo aqui não o Brasil mas o cada vez mais desqualificado Presidente Bolsonaro.
É de agradecer ter mostrado ao mundo um verdadeiro líder, o Presidente Zelensky da Ucrânia, mostrando à exaustão que as verdadeiras qualidades da liderança se revelam em tempos de crise e que têm como pressuposto fortes qualidades humanas.
É de agradecer ter mostrado ao mundo quais são as características psicológicas dos bullies, dos abusadores e dos narcisistas.
É de agradecer os espetáculos públicos que são as reuniões oficiais televisionadas pois, ainda que coreografadas, acabam por revelar a natureza da liderança e a lealdade, ou melhor, a ausência dela, na corte de Putin. A situação em que colocou Serguei Narychkin, diretor do SVR, serviço de inteligência externa da Rússia, ou mais recentemente o Chefe do Estado Maior General, é exemplo da natureza da liderança e do nível de consideração pelos liderados.
É de agradecer, por último, o facto de ter mostrado ao mundo a real capacidade da máquina militar russa depois de duas décadas de reequipamento, reorganização e reforço.
A Rússia terá, nesta invasão da Ucrânia, projetado cerca de um terço da sua força militar total, a qual deverá corresponder a perto da sua capacidade máxima de projeção de forças, para um teatro de operações que conhecem muito bem, com o qual têm continuidade territorial, que é favorável ao exército terrestre e ao uso de blindados (estrutura principal das capacidades militares russas), que tem características ideais para a condução de operações especiais, de ações encobertas e de operações de guerra psicológica – um teatro de operações onde até parece disporem de colaboradores entre os locais.
Acresce que é um conflito em que escolheu o momento para o ataque, dispôs do tempo necessário para o planear e recolher a informação necessária e possuía, à partida, uma enorme vantagem posicional, atendendo à disposição de forças em torno das forças armadas ucranianas, bem como de uma supremacia numérica de meios aéreos e navais relativamente à Ucrânia.
Sem querer, de todo, relativizar nem a capacidade militar e sobretudo a fantástica tenacidade e vontade nacional em resistir da Ucrânia, nem o facto de apenas terem passado cinco dias desde o início do conflito, parece, contudo, que se confirma o que já se suspeitava há algum tempo sobre as tradicionais dificuldades na capacidade de combate do exército russo e a permanência das deficiências históricas do mesmo, relativamente à sua capacidade logística e de organização (a que parece somar-se o baixo moral).
Claro que a incapacidade constatada em assegurar uma vitória rápida e convincente tenderá a enfurecer o orgulho russo, podendo levar ao aumento da brutalidade, tal como já evidenciado no passado.
Neste caso, poderia igualmente agradecer o facto de ter dado a todas as forças armadas europeias um estudo de caso em que, também aqui, o mito da capacidade convencional russa é colocado em causa.
Acrescento que é de agradecer ter colocado a nossa juventude, na sua maioria pouco focada em assuntos desta natureza, a consumir informação sobre a situação e a questionar as razões e fundamentos da mesma.
Numa nota mais pessoal, e na qualidade de pai, preferia que os meus filhos mais velhos não tivessem que se interessar por tragédias destas, mas não posso deixar de me sentir impressionado pela velocidade com que se interessaram, informaram e tentaram tomar posição. Claro que, quando se constata a idade dos jovens soldados russos atirados para um conflito sem sentido e a idade dos jovens ucranianos que são forçados a defender o seu país ou a fugir de bombardeamentos com as suas famílias, a identificação com a situação torna-se muito mais forte.
Poderia continuar com os agradecimentos ao Sr. Putin, pois há ainda mais a agradecer, no entanto, como sei que existem poucas ou nenhumas possibilidades de recuar nesta situação, agradeço apenas que deixe de pensar nele próprio, no seu próprio mito e sonhos imperiais e que tenha em conta o seu futuro e o dos seus próprios filhos.
De resto, como cidadão português e europeu e como apaixonado da língua, história e cultura russas, termino remetendo apenas para as, já famosas, palavras dos corajosos defensores ucranianos da ilha da Cobra no Mar Negro, em resposta ao ultimato apresentado por um navio de guerra russo: Obrigado, Senhor Putin.*