A leitura estruturada que fazemos da fé, o seu papel na formatação da sociedade e a sua implicação na hierarquização social, é um impeditivo para que possamos entender o universo místico formado por uma espécie de fusão entre religião e espiritualidade que atravessa o hinduísmo.

Ninguém pode deixar de lado esta realidade confessional que mobiliza milhões de seres humanos e os transporta para campos impenetráveis da relação entre o temporal e o intemporal.

Sri Sri Ravi Shankar é considerado, nos dias de hoje, como a mais relevante figura do hinduísmo, alguém que consagrou a salvação através de programas de ajuda (o mais relevante é o Arte de Viver) que se destinam a fazer frente à progressiva urbanização dos movimentos populacionais e que visa aliviar as angústias da existência perante o desaparecimento dos laços societais e a perdição na floresta de seres humanos.

Sri é um Guru, uma espécie de pastor referência para os crentes, se obtivermos uma comparação com os movimentos cristãos. Mas, para além disso, é também um grande empresário da fé que cria a ilusão do bem-estar e a confirma em inúmeros aspetos do apoio aos mais carenciados através da recolha de donativos e de propinas.

Quando perguntam a Sri sobre a razão de uma implicante opulência na sua forma de vida, nas suas opções por uma certa vulgaridade na conduta e nas relações, este não negou e foi claro na assunção de que a espiritualidade terá sempre um preço e que devem ser os crentes a pagar esse preço.

A facilidade argumentativa de Sri, o seu aspeto carismático e os gestos largos e sentidos, fazem com que se não dê cuidado aos sinais populistas que são usados, a uma certa simplificação argumentativa que aparenta negar o magma hinduísta.

Entrando nos tempos imemoriais de onde partiram as formatações teológicas, há quem situe um primeiro período na decorrência da veneração dos deuses tribais e que recebeu a designação de era inicial ou de Hinduísmo Védico. Recuado a dois mil anos AC, este tempo é de imprecisas assinalações teologais, de ausentes assentamentos da prática da fé.

O Hinduísmo Védico assim recebe indicação porque emerge numa fase muito específica da história das sociedades que habitaram o Panjabe naqueles milénios. Ela vem até três séculos AC, tempo em que se terá iniciado a luz do hinduísmo assente numa visão compósita que quase nos remente para a Santíssima Trindade.

Brahma, enquanto alma global a todos chegando, Vishnu, elemento equilibrador e garante da paz, e Shiva, a componente destruidora do espírito, diferem da Santíssima Trindade por trazerem o “diabo” para a mesa reinante. A Brahma, enquanto pai e Vishnu, enquanto filho, falta o equivalente ao Espírito Santo.

O período védico é o mais reverente do estudo histórico e teológico. Porque fundamental para se identificar um caminho monoteísta, porque permissão de uma certa uniformização no compromisso entre visões do mundo recebidas de territórios e influências tão desiguais.

O tempo seguinte, indicado como o do hinduísmo híbrido, é aquele que tenta incorporar todos os deuses numa só leitura. A existência de Mantras ecuménicos, em que todos os deuses devem receber preces iguais, é uma espécie de pré-formatação dos Santos que a Igreja Católica inventou para a sua militância religiosa. E, por isso, mesmo que monoteísta, a ICAR não deixa de responder a antigas leituras e práticas de cada povo e de cada tempo, seja através das vestes imensas de Nossa Senhora, seja através da elevação aos céus de almas que, em vida, fossam assinaladas pelo Senhor.

O hinduísmo, através da lei do Carma, é a revelação da causa/efeito. Trata-se da mesma visão do pecado e do arrependimento, uma interpretação binária que está sempre nos textos religiosos. É também do Carma que ressalta a compaixão, essência de certos tempos, cíclicos e não perenes, do cristianismo, do judaísmo e até do islamismo.

A imortalidade, que tanto pode ser teológica ou filosófica, é validada pelo hinduísmo através da Moksha. Esse ciclo de renascimento após a morte é o da eterna felicidade que advém da interceção do nosso, dos nossos, Deus.

Todas estas realidades, práticas ainda muito afirmadas em imensos territórios onde o povo hindu se transformou em presença e diáspora, levam-nos até ao ponto em que a leitura sobre o que devemos comer é central. Poderão os olhares mais desatentos do Ocidente em perdição desgraduar tais compromissos. Importa dizer que os cristãos, os judeus, os islamitas, todos, incorporaram restrições alimentares como sinal de reafirmação da sua relação com a salvação através do seu Deus. Não há também aqui diferença profunda sobre o caminho, os ritos ou as obrigações.

A superficialidade com que reclamamos, a cada dia com mais intensidade, o direito a uma vida espiritual leva-nos a ponderar o hinduísmo como uma certa salvação para os tempos incomuns que vivemos. Talvez haja mais de simbólico que de real. E desse simbólico se aproveitam os Gurus como Sri.