A história da impossibilidade de efetuar uma transição energética – passando a ter economias alimentadas por fontes de energia renováveis ao invés dos poluentes combustíveis fósseis – é geralmente descartada pelo argumento: “os mercados têm os combustíveis fósseis como a fonte preferida, interferir com tal escolha teria custos significativos”.
Isto é, o mercado é dotado de uma inteligência descentralizada dos agentes privados, com a qual a estupidez centralizada dos Estados não pode competir. A intervenção do Estado suga recursos públicos para projetos ruinosos, sendo pois melhor que qualquer intervenção seja o mais ligeira possível. Cabe deixar a “natureza” fluir, e assim fazer assentar as nossas economias nos combustíveis fósseis.
As falhas deste argumento são várias, e há um facto que o mata à nascença: a escolha pelos combustíveis fósseis é altamente patrocinada pelos Estados.
Isto foi descortinado há muito, e uma nova investigação pela Investigate Europe – equipa multinacional de jornalistas europeus – explicitou-o ainda mais. Por ano, pelo menos 137 mil milhões de euros são canalizados por 30 estados europeus – UE27 mais Noruega, Suíça e Reino Unido – para o setor fóssil. Entre deduções fiscais para os combustíveis diesel, impostos quase inexistentes para o setor da aviação, investimentos públicos em operações extrativas, benesses para o uso de carros das empresas, apoio a infraestruturas de exploração fóssil, as formas de largar dinheiro público em emissões de gases efeito estufa são imensas.
Enquanto isso, a União Europeia compromete-se a uma agenda para a descarbonização – o European Green Deal – no qual a Comissão Europeia prevê uma redução das emissões em 55% para 2030 em relação ao nível de 1990, atingindo a neutralidade carbónica em 2050. Este para já tem um orçamento previsto de 260 mil euros por ano, ou seja, o valor anual previsto para em 10 anos combater a destruição das condições de existência de civilização é apenas cerca do dobro dos 137 mil milhões doados anualmente para a proteção dos lucros das empresas fósseis. Bizarras as prioridades europeias.
Atingir quaisquer metas significativas de redução de emissões de gases com efeito de estufa implica em primeiro lugar a supressão dos subsídios. No entanto, logo o processo de inventariação oficial destes está repleto de lacunas criteriais. Por exemplo, a “frugal” Holanda, com quase seis mil milhões de euros entregues anualmente a fósseis, nega qualquer subsidiação dos combustíveis fósseis. As intenções ficam no ar, e a retórica europeia de combater as alterações climáticas tem dificuldade em materializar-se.
A situação parece negra na Europa? Um paper publicado pelo FMI reportou que em 2017, por todo o mundo, a indústria fóssil recebeu 5,2 biliões de dólares em subsídios governamentais. Isto é, 6,3 % do Produto Interno Bruto mundial. Embora com um critério mais abrangente para definir subsídios – inclui também uma estimativa do custo de externalidades negativas destes –, os dados apontam no mesmo sentido: a economia fóssil mundial é uma criação dos Estados, só depois chegam os mercados. É um sector verdadeiramente subsidiodependente que, além de destruir o equilíbrio climático do planeta, só pode viver à conta dos Estados e do dinheiro dos fundos públicos.
Mas o problema não se esgota nos orçamentos de Estado. Por exemplo, segundo um estudo de 2017 do Centre for Climate Change Economics and Policy, o Quantitative Easing do Banco Central Europeu alocou 62,1 % das compras de obrigações a empresas de setores altamente responsáveis pela emissão de gases com efeito de estufa, embora só representassem 18 % do Valor Acrescentado Bruto.
São vários os mecanismos opacos – desde o financiamento que os bancos centrais providenciam, às políticas de infra-estruturas focadas em transportes individuais e aeroportos – a servir de instrumentos da política estadual ao serviço da indústria fóssil. É sobre décadas destas políticas que a economia fóssil assenta.
E como fica Portugal neste panorama? Pelos critérios do Investigate Europe, este país em que o Governo se afirma afincadamente dedicado na luta contra as alterações climáticas, em 2019 subsidiou com 436 milhões de euros o uso de combustíveis fósseis em atividades como o transporte aéreo e marítimo, aos quais se juntaram 268 milhões em licenças de emissões oferecidas. Com várias outras rubricas (até o offshore da Madeira participa na festa) o total chega a quase 900 milhões de euros por ano de borlas ao setor fóssil.
Dadas as recentes intenções do Governo português de lançar o hidrogénio, não se estranha a desconfiança de várias partes, dado o legado de projetos no setor energético que em primeiro lugar servem para garantir o lucro através de fundos públicos. De estranhar é a seletividade da desconfiança, ausente quando se trata de subsidiar projetos fósseis. O denominador comum em ambos é a vontade de garantir rendas, quer sejam geradas a petróleo ou pela via renovável.
Vivemos em economias fósseis que se sustentam na intervenção do Estado. A transição energética necessária passa por deixar de alimentar a parte fóssil e criar um setor renovável em tempo útil – isto é, nesta década – para cumprir com as metas climáticas.
A agenda de governos como o português passa neste momento por manter o setor fóssil parasitário, enquanto simula ação climática que serve para pouco mais do que dar mais oportunidades de negócio aos rentistas do costume. A política energética é ditada pela intervenção do Estado. Falta ainda uma escolha democrática para decidir qual é a queremos ter.