A acusação aos implicados no caso dos paióis de Tancos foi mais uma oportunidade para alguns comentadores de bancada continuarem corajosamente a “malhar” no Exército, qual alcateia enraivecida à volta de uma vítima fragilizada e com recursos limitados para se defender. É fácil aceitar acriticamente a acusação tal como foi servida, abraçá-la como uma verdade absoluta e inquestionável, partindo do princípio de que tudo o que está escrito é verdade.

Porém, uma análise mais granular do caso mostra-nos que afinal os assaltantes não são tão cosmopolitas como alguma comunicação social adestrada nos tentou fazer crer. Não são mercenários ao serviço de senhores da guerra do norte de África, nem do IRA nem da ETA, como em último recurso chegou a ser alvitrado. Por isso, a ETA não veio às compras à Chamusca. Será assim tão difícil de perceber?

O Procurador precisa de um aggiornamento em relações internacionais, porque a ETA tinha abandonado a luta armada e entregue o armamento. Neste particular, a acusação não passa de uma caricatura grotesca, não corroborada pelo juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal, que não considerou existirem indícios do crime de terrorismo, apontando os factos como crimes de natureza militar.

Os assaltantes não tinham ligações ao terrorismo nem ao crime organizado internacional. A perspicácia dos comentadores não bastou para perceberem que o alegado crime de terrorismo apenas serviu para mascarar crimes estritamente militares e afastar indevidamente a PJM da investigação.

O clímax da leitura das 556 páginas da acusação atinge-se quando se acusa de tráfico de armas quem recolhe o material furtado e o entrega numa unidade militar, sem pedir nada em troca. Nada que levante interrogações aos analistas de ocasião que tanto se têm pronunciado sobre a matéria. Assim como as narrativas contraditórias da PGR e da PJ. A primeira diz – depois de três juízes se terem declarado incompetentes – que a informação era vaga e não havia por isso necessidade de informar o Exército, e a segunda afirma que tinha informado um major, como se o diálogo entre instituições se processasse desse modo. Falta a “arma do crime”, a prova tangível de que o Exército foi informado.

Com raríssimas exceções, os comentadores de bancada não sentiram incómodo por instituições de referência sonegarem informação ao Exército sobre um assalto em preparação, o que teria evitado o crime.

É mais cómodo reduzir tudo à competição entre polícias, não arriscando questionar as contradições entre a PGR e a PJ, ou a ilegalidade do despacho da PGR violando a Lei de Organização da Investigação Criminal (LOIC), o Código de Justiça Militar (CJM) e a Lei Orgânica da Polícia Judiciária Militar (LOPJM), que estipulam inequivocamente o que é um crime estritamente militar, uma competência inequivocamente específica da PJM, colocando ao seu diretor o dilema de cumprir um despacho ilegal ou cumprir a lei. Fazê-lo dá trabalho, é preciso ter conhecimento e correm-se riscos.

Os comentadores não se sentem aviltados, porque têm à mão uma presa fácil em quem “malhar” e, consequentemente, abundante material para cumprirem a sua função social de “informar”, mesmo que isso não passe da regurgitação de factos mais do que estafados e repetidos.

Não interessa averiguar a manipulação da opinião pública, a sonegação de informação essencial, a violação da lei por quem tem a responsabilidade primária de a respeitar, ou a fraqueza da acusação do Ministério Público. Isso são minudências, mesmo que no seu conjunto consubstanciem um ataque violento ao Estado de direito. Há que manter o alinhamento com a narrativa segura e confortável do mainstream.

O país está escandalizado com o modo como foi “achado” o material. Saberão porventura os comentadores como se “acha” a droga ou se desmantelam redes de prostituição? Ou como foram desmontadas as FP25 de Abril, entre outros casos? Talvez seja melhor não saberem para não terem verdadeiros motivos para ficarem escandalizados.

Algumas interrogações finais. O que irá acontecer quando ficar provado que não houve crime de terrorismo? Haverá sustentação para manter a acusação? Porque é que se investigou primeiro o achamento e não o furto? Será que existe alguma relação entre a não recondução da PGR anunciada no dia 20 de setembro de 2018 e a detenção de sete militares da PJM e da GNR suspeitos de terem forjado a recuperação do material cinco dias mais tarde? Esperemos que o reabilitado delator e informador “fechaduras” não desapareça para parte incerta, porque vai ter muito que contar.

O resultado desta aventura foi e será péssimo para todos os intervenientes, muito em particular para as instituições de uma ou de outra forma envolvidas. Ficarão todos “mal na fotografia”. O facto de os artefactos do assalto de Tancos terem sido recuperados, mas as Glock roubadas das instalações da PSP ainda andarem por aí, parece não perturbar o sono de analistas e comentadores. Talvez seja inconveniente “malhar” na polícia. Já os romanos diziam que nos territórios oeste da Ibéria havia uns tipos muito particulares.