Nas noites de 30 e de 31 de maio, nas vésperas da segunda ronda de negociações entre russos e ucranianos, em Istambul, com vista a discutir a paz na Ucrânia, Kiev levou a cabo duas poderosas operações militares em território russo. Falamos da destruição de três pontes nos oblasts de Kursk e Bryansk e dos ataques a cinco bases aéreas estratégicas (Murmansk, Irkutsk, Ivanovo, Ryazan e Amur) localizadas na profundidade territorial russa, apenas bem-sucedidos em dois casos (Murmansk e Irkutsk).
A terem sido todos os ataques eficazes, as consequências para a capacidade de bombardeamento estratégico russa teriam sido catastróficas. Não foi o que aconteceu. Estima-se que tenham sido afetadas 13 aeronaves (8xTU-95. 4xT-22M3 e uma de transporte), três delas irreparáveis, de uma frota de 132. Apesar do dano causado, o nível destrutivo dos ataques foi baixo.
O presidente Zelensky assumiu a responsabilidade pelos ataques elogiando publicamente o feito e o seu executor, o general Vasyl Malyuk, chefe do serviço de segurança (SBU). Segundo os ucranianos, foram usados na operação 117 drones, que teriam destruído cerca de um terço da capacidade russa. Estes ataques levantam uma série de questões merecedoras de atenção.
O momento escolhido foi a véspera das negociações, em Istambul, onde os ucranianos estavam obrigados a comparecer. Está longe de ser verdade, esta ideia recorrentemente apresentada, de que os ucranianos se encontram altamente comprometidos com a paz. Estes ataques não podem ser dissociados da tentativa, sem sucesso, de boicotar as negociações. No entanto e dito isto, não se está a afirmar que os russos estejam particularmente empenhados na imediata resolução política do conflito.
Como já nos habituou, o objetivo de Kiev com esta operação prendia-se mais com o seu impacto mediático do que com os reais benefícios militares. “Um espetacular golpe de propaganda”, como lhe chamou a BBC. Mas ia para além disso. Pretendia mostrar aos seus patrocinadores, que não está acabada, que pode provocar dano ao adversário, que pode ser um bom investimento, num momento em que algumas fontes de abastecimento começam a secar, sobretudo do lado norte-americano. Não foi por acaso, que Lindsey Graham, coincidentemente em Kiev na véspera do ataque, dizia que a Ucrânia não estava a perder a guerra, que ainda está em jogo e que é preciso apoiá-la enviando mais armas e munições.
Tudo indica que houve serviços estrangeiros envolvidos no ataque e que alguns norte-americanos tiveram conhecimento prévio. A Axios deu nota disso, retratando-se uma hora mais tarde. O secretário de defesa Pete Hegseth terá acompanhado a operação em tempo real. Parece pois difícil escamotear algum envolvimento norte-americano. Entre outros aspetos, importa saber quem informou os ucranianos da localização exata das aeronaves russas.
Desconhece-se se o presidente Trump estava informado dos ataques, mas não se pode deixar de estranhar o facto de se ter mantido em silêncio, quando antes tinha sido tremendamente vocal sobre os ataques russos da semana anterior à Ucrânia. Estamos recordados do seu post na Truth Social a mandar Putin parar. A isto deve acrescentar-se as suas declarações enigmáticas: “o que Vladimir Putin não compreende é que se não fosse eu, montes de coisas más já teriam acontecido à Rússia, realmente más. Ele está a jogar com o fogo!”
O ataque à aviação estratégica russa coloca-nos perante um outro assunto de extrema gravidade. É um facto que os russos já haviam utilizado os TU-95 para atacar a Ucrânia, o que dava aos ucranianos legitimidade para os atacar. Mas os TU-95 também integram a frota de bombardeiros estratégicos russos, que transportam armamento nuclear e isso confere uma outra dimensão, não escamoteável, aos ataques.
Os bombardeiros estratégicos russos encontravam-se estacionados na pista em conformidade com o estabelecido pelo novo Tratado START, que exige a permanência das aeronaves ao ar livre em locais observáveis pelos satélites, de forma a permitir o seu controlo pela outra parte, normalmente em bases aéreas designadas, para verificar não só a sua localização, mas também o tipo de armamento (nuclear ou convencional) com que poderão estar equipadas.
Teoricamente, a Rússia não estava obrigada a fazer esse exercício, uma vez que suspendeu a sua participação no Tratado, em fevereiro de 2023, interrompendo as inspeções e a partilha de dados. A Ucrânia alavancou oportunisticamente este contexto.
Este comportamento dos ucranianos levou o ex-assessor de Trump, Stephen Bannon, a afirmar: “Estamos [EUA] a ser arrastados para uma possível Terceira Guerra Mundial que ofusca as duas primeiras. E isso acontece todos os dias da forma mais flagrante. A Casa Branca disse não ter conhecimento dos planos dos ucranianos. Simplesmente atacaram a tríade nuclear da Rússia… o país que patrocinamos [Ucrânia] e com o qual fazemos negócios está agora a arrastar-nos para a sua guerra. Pensam que podem atacar território russo e arrastar-nos para um conflito com a Rússia. Estamos a ser arrastados para um conflito que se pode transformar em metástase.”
No mesmo sentido, pronunciou-se o ex-conselheiro de segurança nacional Mike Flynn ao afirmar que “a audácia de Zelensky infligiu um insulto geopolítico a Trump e aos Estados Unidos. Zelensky pôs em risco a segurança global sem pensar duas vezes, dando luz verde a ataques a aeroportos russos sem o conhecimento de Trump… se a Ucrânia está disposta a atacar com consequências estratégicas sem notificar a Casa Branca, já não somos apenas aliados com uma certa dessincronização: somos um partido de guerra a voar às cegas e fora de controlo.”
Estes ataques não afetaram a situação no campo de batalha, onde as forças russas continuam a avançar e onde as forças ucranianas começam a demonstrar uma dificuldade cada vez maior em as deter. Para além do impacto mediático, as consequências do ataque não produziram mudanças significativas nas forças estratégicas russas nem produziram alterações no equilibro nuclear estratégico entre os EUA e a Rússia. Se havia a intenção de o alterar, isso, claramente, não foi conseguido.
O dilema da resposta
Estes ataques à aviação estratégica russa foram mais um caso de espetacularidade, a juntar a tantos outros (os ataques ao Crocus City Hall e ao Kremlin, à ponte de Kerch, aos radares de aviso prévio estratégico, os assassinatos seletivos, etc.) e podiam ter justificado uma resposta musculada do Kremlin, que optou até agora por não a dar.
O Kremlin tem demonstrado uma paciência estratégica assinalável. A Rússia tem preferido absorver essas provocações. Os defensores deste comportamento russo argumentam que, estando a Rússia a ganhar a guerra, não é conveniente responder a essas provocações, porque isso daria azo a uma escalada incontrolável e o pretexto para atores exteriores se intrometerem no conflito. Por outro lado, alguns analistas incautos, sobretudo no Ocidente, confundem paciência com passividade, veem fraqueza no comportamento do Kremlin, e caucionam a ultrapassagem de todas as linhas vermelhas. No final do dia, o Kremlin recuará sempre, porque tem medo, segundo eles.
Ao contrário do seu habitual estilo bombástico e fanfarrão, Medvedev veio agora, num tom sério e sem estridência, dizer que a retaliação vai ser inevitável: “tudo o que precisa de explodir, explodirá, aqueles que precisam de ser eliminados, serão eliminados.” Com este ataque ao sistema nuclear estratégico russo, depois de ter atacado os radares de aviso prévio, Kiev ultrapassou todas as linhas vermelhas russas.
Com estes ataques, Zelensky escalou o conflito transportando-o para um ponto sem retorno. Não restará a Putin outra solução que não seja a de também escalar. Os desenvolvimentos a que assistimos representam uma mudança na direção de uma guerra em larga escala.
Zelensky sabe que a Ucrânia não tem hipótese de vencer uma guerra contra a Rússia. A única forma de se manter à tona da água é envolver o ocidente num conflito direto com a Rússia, tão cedo quanto possível, mesmo que isso passe pela destruição do seu país e a aniquilação do seu povo. Veremos se os europeus percebem que se estão a envolver num jogo de soma negativa, e não caiem na armadilha. Para além de se procurar perceber quais os termos da escalada retaliatória russa, é preciso perceber como vai o designado ocidente responder.
O encontro de dia 2 de junho em Istambul poderá ter sido a última tentativa de resolver o conflito sem ser pela via militar. Tudo indica que a Ucrânia se irá arrepender desta audácia. E veremos se o arrependimento ficará apenas em Kiev.