O artigo do “New York Times” (NYT) do passado dia 21 de julho, da autoria do seu Editorial Board, deixou-nos estupefactos. Contradiz frontalmente o que tem sido a linha editorial daquele jornal relativamente à Rússia.
O artigo manifesta uma grande preocupação com a cada vez maior aproximação da Rússia à China, e vice-versa. Segundo os autores, essa aproximação coloca um desafio estratégico aos Estados Unidos. Até aqui nada de novo. Essa aproximação não é de agora. Iniciou-se há alguns anos e vai continuar a aprofundar-se.
O artigo ilustra essa aproximação com uma série de atividades levadas a cabo em conjunto por ambos os países, a maioria delas de natureza militar, que os autores reputam ser algo novo. Poderiam ter também mencionado outras iniciativas como seja a cooperação no domínio energético e a construção do gasoduto para transportar gás russo para a China.
O texto dá voz aos receios do establishment relativamente ao aprofundamento dessa cooperação. Grande parte do artigo baseia-se no “Pentagon White Paper” publicado recentemente. John Arquilla, professor da Escola de Pós-Graduação da Marinha norte-americana, que participou na elaboração do documento sublinhou que o sistema mundial, e a influência nele exercida pelos Estados Unidos, seria colocada em causa se Moscovo e Pequim alinharem ainda mais os seus objetivos e consequentemente a sua atuação.
A primeira surpresa é constatar a admissão por parte dos autores – provavelmente com algum amargo de boca – que afinal era correta a ideia do presidente Trump tentar estabelecer uma relação sólida com a Rússia e assim afastá-la da China.
É de uma tremenda incoerência, um jornal que se notabilizou nos dois últimos anos por bradar diariamente, nalguns casos a roçar a boçalidade, contra a ingerência russa nas eleições norte-americanas e as relações promíscuas entre Trump e a elite russa vir agora propor uma reaproximação entre a Casa Branca e o Kremlin, como se nada tivesse acontecido. Depois da imposição de duras sanções à Rússia, expulsão de diplomatas, e outras niceties, é notável que os autores do artigo consigam ponderar a possibilidade da Rússia cooperar com os EUA, contra a China.
A segunda surpresa prende-se com as soluções preconizadas pelos articulistas para contrariar essa aproximação. Os Estados Unidos deviam cooperar com a Rússia no espaço, revitalizar a cooperação em matéria de controlo de armamento, etc. Apesar de toda a verborreia com que nos tem vindo a presentear, afinal o liberal NYT até nem se incomoda com a cooperação entre democracias liberais e iliberais, mesmo com autocracias, se for conveniente e houver benefício.
O artigo denota a crescente preocupação de largos setores da elite política norte-americana com as dificuldades de afirmação do projeto hegemónico global norte-americano. O artigo repesca – erradamente – a “cartada chinesa” de Nixon e do seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Henry Kissinger, para criar divisões no mundo comunista. Seria agora o momento de vingança, com Putin a trazer a China para a sua esfera de influência.
Só que a história hoje é outra e bem diferente. Não se trata agora da “cartada chinesa”, mas da “cartada russa”, que a China jogou antes dos EUA. Deviam ter pensado nisso mais cedo. Agora, como diz o povo, “tarde piaste”.