Pessoalmente, nunca gostei de touradas. Nem quando era criança e o brilho das lantejoulas e das luzes da arena tornavam mais fácil ignorar a barbárie a que sujeitavam aqueles bichos cornudos em nome do entretenimento. Mas não posso – nem quero – impor ao resto da sociedade as minhas preferências, tal como não almejo proibir concertos do Tony Carreira, ou que se diga “sandocha” para descrever duas metades de pão com algum tipo de recheio entre elas.

Tal faz parte da individualidade de cada um, e, por princípio, acredito que devemos tentar condicioná-la o menos possível. No entanto, a tauromaquia e a sua legalidade não constituem uma questão de liberdades individuais, ao contrário do que muitos apregoam.

Um amante de touradas é livre de gostar delas, tal como um racista é livre de odiar etnias que não a sua – a questão é o acto, a aplicação dessas preferências, que têm óbvias e inegáveis externalidades negativas. E, enquanto que me parece socialmente aceite que o racismo e a discriminação com base na cor da pele são um atentado aos direitos do Homem, custa-me compreender como é que uma actividade como as corridas de touros não foi já considerada um atentado aos direitos deste belo, portentoso animal.

A questão voltou ao debate nacional com a entrada da nova ministra da Cultura e a sua vontade expressa de não baixar o IVA dos eventos tauromáquicos. A direita, sempre pronta a acusar o outro lado de relativismo, mostrou-se ofendidíssima com a falta de tolerância e respeito pela festa de esfaquear cornípetos. Nas palavras da ministra: “a tauromaquia não é uma questão de gosto, é uma questão de civilização”.

Eu concordo; mas não percebo, então, como é que não se proíbe, como tentou o PAN em Julho. E perceberei ainda menos a posição do BE, que, nunca avesso a proibições, parece disposto a vender o sofrimento animal, como se o respeito pelos touros pudesse ser colocado de lado se daí resultarem mais umas migalhas fiscais. Mas, precisamente como o mundo raramente se move por valores e mais por interesses, interessa analisar a perspectiva económica da questão.

Ora, como podemos ver em dados da Inspecção Geral das Actividades Culturais de 2016, a tauromaquia constituirá, no máximo, um nicho de mercado. Senão vejamos: apenas duas praças (Lisboa e Albufeira) registaram mais de dez espectáculos durante esse mesmo ano, sendo também as únicas a ultrapassar a marca dos 20 mil espectadores (alargando a análise a dez mil espectadores, foram oito praças fixas as que atingiram tal valor).

Numa actividade claramente sazonal (apenas entre Maio e Outubro se realizaram pelo menos dez corridas em território nacional), os números de espectáculos têm vindo constantemente a cair desde 2009, bem como o número de espectadores, quer ao vivo como na televisão (só em 2017 se registou um pequeno aumento de 4% nos espectadores, suficiente para garantir, nesse ano, um número total de espectadores pouco maior do que metade do que se registou em 2008). Como é possível então que um mercado já por si pequeno e em declínio crie tanta riqueza, ou pelo menos o suficiente para justificar que não seja tornado ilegal?

Aos que clamam pelo fim do sofrimento físico causado ao animal é-lhes dito que, sem a tauromaquia, a espécie não existiria mais (não sendo especialista em biologia, parece-me que, para haver vacas, terá de haver sempre o seu correspondente masculino dotado de órgãos sexuais completos – a.k.a. “touro”); a defesa de que faz parte da tradição e herança cultural portuguesa é confrontada com outras práticas que, apesar de socialmente aceitáveis e profundamente enraizadas noutras culturas, são claramente prejudiciais e causadoras de sofrimento (como a mutilação genital feminina, por exemplo); e poderíamos continuar nisto durante algum tempo.

Numa altura em que nos deliciamos com a forma como, lá fora, tanto exaltam a nossa história, hospitalidade, beleza natural e urbana, custa-me seriamente acreditar que quem nos visita vindo do Norte da Europa ou América veja nas touradas um espectáculo nobre e definidor da nossa cultura, em vez de uma barbaridade medieval. É que se for para abraçarmos os nossos defeitos como parte da nossa herança e os quisermos rentabilizar economicamente, acho que uma nau cheia de africanos acorrentados no Terreiro do Paço era capaz de ser mais representativa da nossa verdadeira história.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.