Queixar-se-ão alguns da impreparação e falta de assertividade no reforço do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Pessoalmente queixo-me de um acto legislativo que, por omissão grosseira, desprotege os trabalhadores e permite o triunfo do abuso.

Todos perceberam que existiria uma segunda vaga, pior que a primeira. Disseram-nos os epidemiologistas e relembraram-no os historiadores (pela analogia com a gripe espanhola).

Tivemos seis meses para nos preparar e reforçar o SNS para esta segunda vaga: recrutar enfermeiros, suprir as saídas por reforma dos médicos, aumentar as equipas de testagem e monitorização de quarentenas, e alojar em hotéis (agora vazios) aqueles trabalhadores dos lares e demais serviços essenciais que vivem em alojamentos sobrelotados, onde o distanciamento social é impraticável.

Foi o teletrabalho adoptado, novamente, com força legal. Medida inteligente, sensível, não obstante os perigos de perda do sentido social do trabalho e da disrupção que isso pode causar em empregos de prestação serviços presenciais. Estamos conscientes disso.

Claro que a obrigatoriedade de ser exercido numa lista, mutável, de pouco mais que uma centena de concelhos, adiciona incerteza e imprevisibilidade num processo que as dispensava.

Depois, conceder às empresas a possibilidade de, fundamentando, recusar o teletrabalho, nos moldes em que está legislado, é uma coisa digna de amadores. Pois que tem de ser o trabalhador, individualmente, e não qualquer estrutura representativa dos trabalhadores (como os sindicatos) a deduzir oposição, num muito curto prazo de três dias úteis, para a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT). Que tem igualmente um prazo curtíssimo para verificar da exequibilidade da queixa apresentada.

Não obstante o profissionalismo e o sentido de serviço público dos seus trabalhadores, a ACT não poderá estar dimensionada para este reforço inopinado de competências em plena pandemia. Receamos que seja excessivo querer que seja a ACT a última linha de defesa.

O resultado vai ser o esperado: os trabalhadores, individualmente considerados, terão fundados receios de reclamar e várias empresas estarão a obstaculizar o teletrabalho para as mesmas funções e posições em que o autorizaram na primeira fase. Já ouviram falar em equipas em espelho e providenciar condições tecnológicas para que o teletrabalho se possa realizar?

Por isso, não me queixo de um reforço do SNS que poderia e deveria ter sido mais intenso e assertivo. Queixo-me, isso sim, daqueles que por impreparação, omissão ou obediência a eventuais interesses inconfessáveis, propiciam que o abuso triunfe e que reduzem a eficácia de mais um quase-confinamento.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.