Há dias fui a um notário de Lisboa para passar uma declaração de autorização de saída do país de um filho menor. A sala de espera era pouco mais do que um corredor com meia dúzia de cadeiras. À espera de vez, éramos uns vinte, de muitas nacionalidades e idades, cada um o seu assunto, o de muitos mais, acredito, a ver com o direito a permanecer no país e não tanto de sair dele. Numa das cadeiras disponíveis sentava-se uma senhora já idosa, apoiada numa bengala.

Nos poucos minutos que tive para avaliar quando seria a minha vez, se o meu propósito era exequível, em que ombreira podia encostar a minha espera, vi-me logo compelido a sair do meu pensamento e levantar a voz a uma mulher muito mais nova do que eu que se abeirara da idosa sentada diante de mim para lhe cochichar que não havia direito, ela tinha de ter prioridade, ser atendida antes de todos aqueles estrangeiros, nós portuguesas devíamos ser atendidas primeiro.

Eu interrompi-a e disse alto que não, não podia dizer aquilo, eu não ia tolerar afirmações xenófobas ali e diante de mim. Ainda reagiu que não estava a falar comigo, que dizia o que lhe apetecia, que me metesse na minha vida. Reagi. Não, não pode, está no espaço público, o que está a dizer não é tolerável, tem de parar. Aqui somos todos pessoas. E fui ao balcão dizer à primeira funcionária que me prestou atenção que havia na sala uma pessoa com direito a atendimento prioritário como, aliás, estava indicado num selo autocolante na parede atrás. Desculpou-se, a sala estava cheia e era difícil.

Pois, precisamente… Mas não demorou muito a que perguntassem pelo atendimento prioritário que se encontrava na sala e a senhora lá resolveu o seu assunto. No fim, atravessando aquela espécie de sala-corredor em direcção à saída, cruzou-se comigo e disse-me obrigado com um olhar de grande franqueza. Pelo menos, assim o senti. A outra mulher afastara-se como quem passa a um modo furtivo, até à próxima oportunidade. Na sala, ficou uma impressão de alívio.

Mais tarde, alguém a quem contava o sucedido disse-me que parece que estamos na Alemanha dos anos 30 do século passado. É num notário, será na fila de um supermercado, no balcão de um café, num balneário de ginásio, conversa que chegará às escolas onde os nossos filhos se formam e onde muitos de nós calha ir votar no dia de eleições.

No mais banal quotidiano, diante dos nossos olhos, podemos ser varridos pelo sobressalto da rejeição de reconhecimento e de direitos, a consequência violenta de alguém ser menos porque não tem a cor de pele certa, a religião certa, a naturalidade certa.

Há dias, uma manifestação contra a islamização do país foi interditada pela Câmara de Lisboa mediante parecer da polícia. Ao planear levá-la ao Intendente e à Mouraria, o propósito dos organizadores era fazer sentir, olhos nos olhos, a pessoas e comunidades, que foram escolhidas para serem objecto de ódio e violência. E contava com este fundo odioso que se vai espessando.

São exigentes os tempos que estamos a viver. Há que estar disponível e preparado para tomar posição e confrontar onde menos se espera, ou seja, em qualquer lugar, em qualquer momento. Porque é essa a dimensão da presença de violência que estamos a ver instalar-se à nossa volta.

Entretanto, vê-se crescer a influência de um partido que não se reconhece na Constituição a ponto de podermos antever que a rasgaria se alcançasse poder suficiente para o fazer. Dados das forças policiais indicam que em 2023 os crimes de ódio somaram uma terça parte mais do que no ano anterior.

As linhas vermelhas estão a diluir-se, aqui e por toda a Europa. Começou por ser uma conversa sobre o direito à liberdade de expressão e de manifestação. Mas, verdadeiramente, a intenção da conversa vai sendo outra, firmar o direito à liberdade de ameaçar e tirar consequências dessa desprezível acção. Estes são tempos exigentes, nas urnas e na rua. Estejamos à altura.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.