São tempos únicos aqueles que vivemos. Mas nem sempre é assim quando uma crise acontece, qualquer que ela seja, ou uma rotina é quebrada. Os tempos da Covid-19 caracterizam-se pela incerteza, pelo medo e pela confrontação que temos diariamente com a falibilidade do ser humano e das suas conquistas científicas e tecnológicas. É difícil aceitar que quem procura planetas e sistemas solares alternativos não tenha resposta para um vírus que surgiu no seu próprio planeta. Contudo, é essa a realidade em que vivemos atualmente.

Entre medos e incertezas, vamos titubeando nas decisões que, perentoriamente, temos de tomar. Mandar ou não os nossos filhos à escola, manter o teletrabalho ou regressar ao local de trabalho, marcar ou não férias parecem, agora, passos de gigante. Embora estas decisões hoje nos pareçam desafios gigantescos, a verdade é que as situações de excecionalidade foram-se vivendo de diferentes formas, mas pareciam não nos afetar tão diretamente.

O recrudescimento dos atentados em países europeus, a maior praga de gafanhotos deste século em África, ou a guerra da Síria ou do Iémen, vitimando, essencialmente, populações civis e, entre estas, muitas crianças não soavam as campainhas de alarme que esta pandemia que toca a todos fez soar. Eram longe e não corríamos o risco (pensávamos de nós) de vitimar diretamente aqueles que mais amamos.

Em tempos que se procuram curas e culpados, em que enfrentamos universalmente o mesmo desafio, para além de todos os outros que cada sociedade tem, perguntamo-nos muitas vezes quem são os mais bem preparados para o momento.

A discussão tem caído amiúde na oposição entre regimes democráticos ou ditatoriais, o que em si é uma falácia. Primeiro, porque nem todas as “democracias” têm a mesma feição e umas são bem mais musculadas que outras e, segundo, porque as ditaduras também divergem bastante entre si. Significa que os contratos sociais em que assentam os vários regimes são de tal forma diversos e correspondem de tal maneira a culturas e comportamentos sociais e políticos tão diferenciados que usar uma única lente para explicar aspetos tão complexos é uma grosseira simplificação da realidade.

Inspirada por estes debates e tentando refleti-los criticamente, li dois livros recentemente que me ajudaram a olhar para dois espaços políticos de forma diferente. Entre uma reflexão sobre os dramas vividos numa Europa que se pode fragmentar a cada instante e as dificuldades enfrentadas num país como a China que teve de se reinventar, reintroduzindo o seu passado e absorvendo de modo transformativo os elementos de progresso contemporâneos, pensei que talvez estas obras contribuíssem para explicar a forma tão diversa como estes diferentes povos têm enfrentado esta pandemia.

Europa à deriva

O primeiro livro que escolhi é uma edição da Casa das Letras e intitula-se “O Complexo Ocidental – Pequeno Tratado de Desculpabilização”. Alexandre del Valle é um franco-italiano, doutorado em história contemporânea, que defende a revisão do conceito de “mundo ocidental” e que a Europa inicie um processo que lhe permita desculpabilizar-se sobre o passado, de modo a recuperar o presente.

O livro, escrito como ensaio, parte de um pressuposto definido: a leitura da situação de uma Europa que se culpabiliza pelo passado e não encontra um rumo para o presente, arriscando-se a ficar no meio de uma disputa entre blocos de influência a que não pertence.

Assim, Alexandre del Valle combina o pensamento de filósofos contemporâneos e filósofos do passado, buscando essa identidade ocidental e a causa desse desconforto da Europa com o seu passado. Curiosamente, Portugal também aparece como um dos países que se pensa e repensa neste contexto de culpabilização, através da filosofia e do quotidiano do país. Para explicá-lo, o autor recorre à teoria da Síndrome de Estocolmo e a uma espécie de movimento autofágico que estaria na origem da pouca estima que os europeus têm pela sua própria história, tornando todos os povos que consigo se relacionaram em comunidades vitimizadas pelo europeu.

O tom é politicamente incorreto e sujeito a muitos contrapontos, mas o leitor pode manter esse diálogo ao longo do livro e questioná-lo. Creio que um dos objetivos deste livro é mesmo esse: lançar a polémica, o debate e a autorreflexão de uma Europa que se deve repensar.

Citando Eduardo Lourenço, Alexandre Del Valle refere a depressão coletiva em que a Europa vive, porque se sente culpada dos infortúnios do mundo. Surpreendentemente, é neste contexto que o autor sugere que os europeus reflitam igualmente sobre o que é o Ocidente e esse espaço, não político, mas identitário, tantas vezes referido, mas paulatinamente esvaziado de conteúdo.

Recuperando a tradição iluminista, Del Valle lembra que existe uma identidade europeia que se estendia até à Rússia e que se baseia no pensamento europeu que durante o século XVIII giza o conceito de universalismo para, mais tarde, bem sabemos, cair nas disputas nacionalistas. O autor toma como referência esse período de constante contacto e correspondência entre intelectuais de todas as partes da Europa que permitiu que os europeus de então se sentissem na vanguarda do progresso. Resulta desta perspetiva a inclusão da Rússia que, de facto, estava, intelectualmente, profundamente ligada aos movimentos culturais e, posteriormente, científicos do resto da Europa – basta recordar como Catarina, a Grande patrocinou intelectuais iluministas, como é o caso de Diderot.

Excluindo os Estados Unidos como parte desta base identitária europeia, Del Valle apela que os princípios políticos que nortearam a auto-identificação europeia seja agora substituída por uma questão cultural e intelectual. Só deste modo, os europeus poderão expiar as culpas e tornar-se de novo povos com capacidade de afirmação internacional, porque, afinal, voltam a quando a Europa era o polo de progresso universal.

O autor diz ao que vem e viaja pela história contemporânea e por vários autores europeus, sempre mantendo o seu objetivo de oferecer os passos que permitam a desculpabilização da Europa e a façam sentir capaz de erguer-se e traçar o seu caminho. Trata-se como é evidente de um livro pré-Covid-19, impresso em fevereiro de 2020 e que o autor deveria vir lançar em Portugal no mês de março.

Mas neste livro estão muitos dos elementos que foram referidos para justificar a alta mortalidade na Europa, como a questão demográfica, a necessidade de relocalizar a produção industrial e da Europa cooperar, procurando o equilíbrio entre globalização e reforço da coesão europeia. A finalidade deste livro é clara, tratando-se da afirmação da Europa judaico-cristã como conjunto identitário capaz de enfrentar os desafios do novo século.

Compreender o outro lado

O segundo livro, escrito por Karoline Kan, uma jovem e reconhecida jornalista chinesa, intitula-se “Sob Céus Vermelhos” e foi editado pela Quetzal em março deste ano. Karoline Kan, dirigindo-se aos leitores, refere quão mais fácil é criticar a China do que compreendê-la. Continuando, alude ao facto de, recentemente, a China se ter tornado atraente para o público de todo o mundo, primeiro, porque o país se tornou na segunda economia do mundo e primeiro parceiro comercial em muitos países, segundo, porque as novas gerações chinesas vivem, cada vez mais, vidas e desafios semelhantes aos dos seus congéneres mundo fora.

Muito elogiado internacionalmente, este livro leva-nos a viajar pelo período que revolucionou completamente a China, passando da predominância das aldeias para a concentração urbana, transitando de uma economia maioritariamente de setor primário, para uma economia de setor secundário que se movia em direção a uma economia assente na ciência e na tecnologia.

A autora não evita os assuntos desconfortáveis, como a política do filho único, a urbanização intensiva, a desigualdade no acesso ao ensino e às oportunidades de promoção social, o controlo das manifestações religiosas. Contudo, fá-lo no contexto da cultura chinesa e esclarece desde o papel da mulher na sociedade tradicional chinesa e a resistência que as mulheres mais dinâmicas na sociedade chinesa tiveram de enfrentar ao modo como foram controlados os movimentos religiosos que se aproveitavam de um vácuo que surgia com a tecnologização da sociedade.

Percorremos essas décadas com Karoline Kan, partindo da sua experiência pessoal e das narrativas da sua família, mas rapidamente penetramos nos comportamentos, ansiedades e cultura do povo chinês. Sem procurar culpados, a autora tenta explicar qual foi o sucesso da sociedade chinesa, permitindo a progressão social de milhões de pessoas, mas também o esforço e sacrifício que esse objetivo envolveu.

O relato da evolução da sociedade chinesa é feito com o olhar do participante, muitas vezes ainda criança, o que torna a leitura mais envolvente, porque o leitor é levado através desse olhar a pensar assuntos tão importantes como o papel do Partido Comunista na sociedade chinesa ou o impacto das tradições na própria receção das novas normas do Partido junto das populações.

Este livro explicativo da sociedade chinesa contribui para melhor se perceber a China contemporânea. Só compreendendo a China a poderemos olhar sem preconceitos. Em tempos de pandemia, em que houve notícia de atitudes e discurso do ódio relativamente a este país, é bom ler-se sobre a sua cultura e comportamentos, sem o intuito de julgar, mas antes de compreender. A leitura deste livro também nos ajuda a perceber porque as medidas restritivas, aplicadas durante o período de pandemia, acabaram por ser acatadas e revelar-se um sucesso em territórios como Macau.

Da unicidade dos tempos à unicidade das histórias

Lendo estes dois livros, percebi que estes tempos únicos, marcados pela vivência de uma pandemia num contexto de desenvolvimento tecnológico, que nos permitiu parar os nossos países, é certo que com elevados custos, e manter uma boa parte das nossas atividades profissionais, educativas, culturais e até desportivas, resultam uma série de circunstâncias únicas que temos vindo a viver. A sensação de transição e de questionamento sobre os equilíbrios tradicionais vinha de trás. Estes dois livros refletem sobre como decaem e se constroem novos atores externos. Se a Europa está num contexto de paulatina perda de influência externa, que até agora não conseguiu reverter, a China agiganta-se como ator global.

Todavia, é interessante notar como a Europa ainda inspira parte da política externa na China, quando estabelece os seus mecanismos de cooperação com África ou a América Latina, mesmo que propondo conteúdos negociais diferentes e reportando-se aos seus próprios princípios de relações internacionais. Também é relevante perceber-se que a China ainda procura ajustar-se às reivindicações internas e exigências externas, pelo que o seu caminho que parece ter sido sempre premeditado e vitorioso, também está eivado de dificuldades, adaptações, avanços e recuos.

Tempos únicos exigem que não se façam juízos de valor precipitados e ainda menos que nos deixemos levar por populismos fáceis que nos fazem acreditar que a China é um gigante incontestado interna e externamente e que a Europa tombou totalmente sobre o seu próprio peso. As obras aqui citadas estimulam sobretudo uma leitura crítica e um exercício de reflexão: a que ponto alguém sai realmente vencedor da pandemia ou se todos apenas nos tentámos adaptar.