Recentemente o Washington Post escreveu um fascinante artigo, “Nothing on this Page is Real: How lies become truth in Online America” que mostra ambos os lados da paisagem cibernética atual: o lado daqueles que criam as notícias falsas e o lado daqueles que acreditam nelas, fazem likes e partilham conteúdos durante muitas horas ao longo do dia.

A proliferação de notícias fabricadas que são apresentadas como tendo origem em fontes verdadeiras e legítimas — as chamadas fake news — tornou-se um padrão perturbante que transformou o nosso uso diário de redes sociais e a forma como consumimos informação. Ajudou a moldar um novo campo ideológico em que terroristas de informação criam plataformas múltiplas onde atacam e difamam os seus oponentes, desencadeando fortes reações emocionais e assim permitindo criar narrativas poderosas, por mais absurdas e falsas que sejam, que são vastamente propagadas e permitem normalizar as perspetivas mais radicais. Por vezes, a bolha de ilusão criada é tal que nem mesmo quando as notícias são denunciadas e desmentidas, os seus leitores querem acreditar na verdade, como mostrou tão bem o artigo do Washington Post.

Toda a gente acredita que os políticos são corruptos, por isso nada mais fácil do que criar uma notícia em que um deputado ou ministro usam relógios de luxo. Temas como pedofilia, violação, sexo são terreno fértil para estes terroristas. E claro, há uma veia negra que flui por debaixo de todas as narrativas e expõe o rosto feio do racismo, xenofobia, anti-semitismo, deixando implícito que devemos defender a nossa identidade nacional, seja ela qual for, dos seus atacantes estrangeiros, sejam eles quais forem.

O objetivo desta rede de desinformação é assumidamente o de manipular e ganhar influência política. Estes criadores de fake news fazem uso de táticas de intimidação e incitamento ao ódio e violência, cometendo crimes relacionados com o uso indevido de dados privados, com fins políticos. Em anos recentes, exploraram até ao limite a falta de regulação legislativa sobre o uso da tecnologia e, graças a esforços concertados de alguns homens muito ricos e ambiciosos, alcançaram assinaláveis ganhos políticos. Como é que este movimento ganhou tal força nos dias de hoje? Recuemos um pouco no tempo.

As guerras culturais

Em 2014, uma caixa de Pandora começou a abrir-se na Internet. As comunidades dedicadas a jogos de vídeo estavam prestes a testemunhar uma reação violenta contra feministas que denunciavam o sexismo dominante na indústria de videojogos. Os nomes de Zoe Quinn e Anita Sarkeesian ganharam visibilidade ao defenderem a necessidade de uma visão muito mais igualitária para uma indústria ainda marcadamente misógina. A reação foi brutal. Quinn e Sarkeesian, assim como outras mulheres, tornaram-se alvo de mensagens de ódio, assédio, intimidação, exposição indevida de dados pessoais (doxing), receberam ameaças de violação e morte e foram forçadas a fugir das suas casas e a recorrer a proteção policial, graças a uma ação deliberada e concertada de grupos anónimos que se reuniam no submundo da Internet (em redes como 4chan, reddit, Twitter).

A reação desproporcional pôs muitos alarmes a soar mas poucos saberiam como esta guerra cultural seria apenas o início de algo muito mais vasto, descontrolado e perigoso. Algumas figuras norte-americanas tornaram-se célebres nas redes sociais por darem voz à guerra contra o “politicamente correto” e recusavam-se a ser “censuradas”, como Milo Yannopoulos e Mike Cernovich, que expunham teorias de uma identidade política masculina e branca oprimida pela diversidade e inclusividade.

Mulheres e minorias étnico-raciais eram o alvo predileto destes grupos que vociferavam nas margens. Estes homens não tinham qualquer pudor em expor as suas ideias de enorme hostilidade contra feministas e esta controvérsia que ficou conhecida pelo nome de “Gamergate” foi tal que permitiu catapultar mediaticamente as suas narrativas alinhadas com a extrema-direita. Juntaram-se a eles outros como Roger Stone, Alex Jones do InfoWars, Steve Bannon do Breitbart News, entre outros, e não faltaria muito para se unirem em torno do candidato Donald Trump em 2016, determinados a quebrar o partido republicano, tomar de assalto o establishment e criar uma nova ordem social e política.

Teorias da conspiração

Fazendo sistemático uso das redes sociais — estas totalmente cegas e indiferentes à instrumentalização política que começara —, estes grupos recorriam a táticas de ridicularização de oponentes de Trump (Jeb Bush, Marc Rubio e John McCain), insinuavam violência, propagavam mentiras, instigando assim em seu torno um grupo de nacionalistas da alt-right, anti-feministas e neo-nazis que teriam forte expressão em agosto de 2017, nas manifestações de Charlottesville. E assim começou a política norte-americana a ser contaminada pelo racismo, xenofobia e anti-semitismo, através de um grupo de extremistas de desinformação que ganharam uma posição de influência na campanha de Trump e que começaram a dominar a agenda conservadora republicana. Teorias da conspiração absurdas como PizzaGate — em que uma rede pedófila de tráfico sexual seria gerida pelos democratas John Podesta e Hillary Clinton  através de restaurantes — começaram a circular meses antes da eleição.

O mal estava feito e, apesar de hoje estarem solidamente desacreditadas, as teorias nunca realmente largaram o imaginário de muitos apoiantes fervorosos de Trump, criando um ambiente hostil e propício a fanatismo. A forma como esta teoria da conspiração e outras como QAnon eram lançadas pelas brigadas alt-right de desinformação e se tornavam virais tornar-se-ia um manual de conduta sistematicamente aplicado.

Mas, naquele ano caótico e hostil de 2016, algo muito mais negro e sinistro fora posto em marcha e culminaria com o hacking e publicação dos emails de Hillary Clinton. Até aos dias de hoje, a equipa de Robert S. Mueller está a investigar se houve ou não colusão entre a campanha de Trump e países estrangeiros hostis aos EUA (Rússia), apontando para uma teia intricada de ligações internacionais criminosas que pretendia influenciar o resultado das eleições americanas. Em março deste ano, 12 agentes russos foram formalmente acusados de hacking da campanha de Hillary Clinton e tentativa de disrupção das eleições americanas. Outras investigações também revelaram  ligações diretas à campanha política pelo Leave no referendo do Brexit.

Brexit e Cambridge Analytica

A ganância e o desejo de influência política foram certamente motores que contribuíram para uma escalada de ações que acabariam não só por eleger Donald Trump em 2016, como por influenciar o resultado do referendo no Reino Unido a favor do Brexit. Mais recentemente, whistleblowers como Christopher Wylie e jornalistas do “The Guardian” e “Observer” ajudaram-nos a decifrar as ligações entre uma empresa como a Cambridge Analytica, fundada pelo bilionário norte-americano Robert Mercer, e Arron Banks, o principal financiador da campanha do Leave no Reino Unido.

“Brexit é a cena de um crime, quando iremos acordar?” escreveu Wylie, expondo os meandros de uma conspiração cibernética cognitiva de largas dimensões. Os nossos dados pessoais no Facebook foram usados e manipulados contra nós. Pior: o Facebook apercebeu-se dessa compilação de dados e não tentou investigar ou impedir a prossecução de objetivos altamente questionáveis.

Em março de 2018, escrevi numa das minhas crónicas: “O mundo começa a despertar agora para os perigos a que a democracia foi exposta, perante um denunciante cujas revelações expõem a mentalidade de manipuladores informáticos da era contemporânea que agem, na realidade, como mercenários, a soldo da entidade que desembolsar mais dinheiro. Amorais e subversivos, provaram a facilidade imensa em contornar as leis e enganar os reguladores.”

Um novo campo político

Os eventos vertiginosos dos últimos cinco anos criaram uma guerra que não é combatida fisicamente, mas que é, acima de tudo, verbal e escrita, e exige adequados conhecimentos tecnológicos. Permitiu redesenhar o espetro ideológico-político e fazer desaparecer a polarização entre direita e esquerda, criando novas áreas cinzentas políticas que não têm qualquer respeito ou apreço pelas democracias liberais. São hoje conhecidos como populistas-nacionalistas e continuam a trabalhar no sentido de minar grandes potências (o Brasil foi o alvo mais recente). Como escreveu Paulo Pena no seu artigo no DN, “o jornalismo tem de explicar-se, as fake news nunca o farão”: esta é a realidade. Só esta: há um setor político específico que usa esta estratégia [difusão de fake news] – chama-se populismo nacionalista e quer derrotar tanto a esquerda como a direita que conhecemos.”

Seria ingénuo pensar que Portugal é imune a esta estratégia global, numa altura em que a Amnistia Internacional alerta para o facto de o discurso de ódio já ter chegado ao país. Agora que começamos a compreender este enquadramento, o que pode ser feito?

A direita e a esquerda têm de suspender o seu eterno blame game e começar a visionar os próximos anos como anos de combate político contra uma força anti-progressista, anti-ciência e insustentável para o nosso planeta. Dados pessoais tornaram-se o novo ouro da nossa era e alvo de cobiça, um facto pelo qual a tecnologia tem de assumir a sua responsabilidade e de ser posta sob controlo legislativo. Se queremos resistir ao dilúvio da desinformação, a independência e rigor jornalísticos devem ser incentivados e preservados com novas formas pioneiras de financiamento.

Nesta nova era, estamos cada vez mais expostos a falsos profetas e gurus de auto-ajuda que propagam termos e palavras-chave como marxismo cultural, George Soros, politicamente correto, anti-intelectualismo, e lançam essas palavras como veneno nas colunas de opinião, discussões e debates que, todos os dias, irrompem que nem cogumelos na Internet, provando que as técnicas de proliferação de fake news continuam a ser bem-sucedidas.

Se considerarmos que grande parte disto começou com as guerras culturais na Internet, não terá chegado o momento de termos uma discussão mais aprofundada e abrangente sobre políticas identitárias, face às clivagens cada vez maiores que estas têm gerado entre conservadores e progressistas?

Demasiadas pessoas já se tornaram armas inconscientes nas mãos de terroristas da (des)informação e o sistema continuará a ser minado e subvertido em favor de uma visão mundial onde a igualdade não tem lugar, e onde o 1% privilegiado continuará a manipular e a controlar os restantes 99%. Ignorar que a nossa realidade está cada vez mais dominada por estes monstros da desinformação pressupõe pagar um preço muito elevado. Testemunhámos, e ainda testemunhamos, os danos infligidos estes últimos anos, particularmente em atos eleitorais. A médio e longo prazo, esses danos podem revelar-se fatídicos.