Suponho que não restarão grandes dúvidas quanto à verdadeira questão que a presidência Trump colocará nos próximos tempos: a resistência da Constituição norte-americana às suas políticas. A divulgação ontem do novo Juiz do Supremo Tribunal, Neil Gorsuch, teve o relevo mediático que marca esta presidência. Na verdade,uma das preocupações de Trump é trazer a televisão para dentro da Casa Branca e fazer da função presidencial um permanente exercício de “democracia mediática”. Mas convém não ignorar a substância das coisas. E a nomeação de Gorsuch não é uma notícia inteiramente má. Sobretudo quando comparada com as restantes decisões tomadas esta semana e as muitas (e funestas) trapalhadas subsequentes.

É claro que não se esperaria outra escolha que não a de um jurista conservador na linha do recentemente falecido Antonin Scalia. Mas pelo que se sabe, Gorsusch sendo um originalista que lê a Constituição de forma literal e que, em coerência com tal entendimento, tende a não favorecer por exemplo, os direitos dos homossexuais, a “affirmative action” ou a legalização do aborto, nem sempre as suas concepções o levaram, no passado, a adoptar soluções conservadoras. Em suma, é um nome que bem poderia ser escolhido por Bush ou Reagan e, apesar de tudo,  ideologicamente bem mais à esquerda do que o seu futuro colega de tribunal Clarence Thomas.

Não se duvidará pois que muitas das decisões normativas de Trump acabarão por chegar, mais tarde ou mais cedo, ao Supremo Tribunal. E é neste ponto que os juízes terão a palavra. Haverá que reconhecer que o Supremo, considerado o mais prestigiado órgão de soberania norte-americano, nem sempre foi exemplo para ninguém. Algumas das suas decisões ao longo de dois séculos de vida tiveram momentos depressivos e mesmo infames (manutenção da segregação racial, por exemplo).

Mas, em geral, pode dizer-se que desde a presidência do Juiz Warren (1953-1968) o Tribunal acertou o passo na defesa da igualdade, da integração racial, da liberdade de expressão, da liberdade religiosa e mesmo, embora de forma mitigada, dos direitos sociais. E para isso tem contribuído uma cultura muito própria do Tribunal, onde a esmagadora maioria das decisões são tomadas por unanimidade. E mesmo sendo os juízes escolhidos pelas orientações filosóficas, mais do que políticas, não é menos verdade que tem prevalecido nos últimos anos uma sensível orientação de autocontenção (“self restraint”), segundo a qual os juízes se abstêm de discutir as opções político-ideológicas do legislador. Esta cultura tem sido a garantia de uma correcta interpretação da Constituição (na maior parte dos casos). Veremos se e como a Constituição, e o que dela quiser fazer o Supremo, resistirão à presidência Trump!

O autor escreve segundo a antiga ortografia.