Dia 4 acordei em choque: Trump podia ganhar! Fui oscilando entre estupefação e esperança e finalmente sábado respirei de alívio. Mas apesar do refolgo, estes dias têm que nos fazer parar e pensar.

Como é que a mentira, a vacuidade, o racismo e a estupidez, convencem quase metade do eleitorado americano? Temos de refletir e reagir. Fenómenos destes batem-nos à porta, com o absurdo Ventura em terceiro lugar nas sondagens para a presidência e a ser-lhe dada oportunidade de apoiar a governação nos Açores.

Talvez essa seja uma primeira regra: o sistema político não pode, em circunstância alguma, abrir portas e estender a passadeira ao populismo xenófobo e ignorante.

Uma parcela da população vota em quem partilha a sua linguagem, em quem diz que lhes manterá o emprego e o negócio e lhes dá uma sensação, ainda que falsa, de proteção. É essencial chegar a esta população, ouvi-la, esclarecê-la e protegê-la, e travar o discurso sobranceiro e arrogante em relação àqueles que não têm voz.

Por isso a economia tem que ser robusta e permitir condições de vida digna, a todos. Tem que se diminuir radicalmente a desigualdade e garantir o acesso aos cuidados de saúde e à educação. Tem que se reinventar o estado social. Só assim se define um contexto infértil para o populismo e se apazigua uma população ansiosa e insatisfeita.

Mas talvez o mais importante seja promover uma sociedade mais qualificada, mais culta, capaz de compreender a diferença entre factos e mentiras, onde as pessoas percebam que uma notícia dos media tradicionais, regulados e maioritariamente sérios, não pode ser negada por um tweet: que uma frase encontrada online não é verdade só porque lá está. Os veículos de desinformação multiplicam-se e o acesso a “factos” sem qualquer filtro constrói realidades alternativas.

Daí a urgência de melhor educação, mas não apenas de uma educação formal: de cultura, de capacidade crítica, do tipo de conhecimento que coloca as pessoas mais alerta, mas, simultaneamente, mais tolerantes e empáticas. Estas pessoas teriam mais dificuldade em tolerar um partido Republicano que, para garantir o poder, apoiasse Trump. Este tipo de sociedade “castigaria” um sistema político que promovesse a mentira, a demagogia e o populismo como forma de controlo político-económico.

Biden é reconhecidamente alguém sensato e experiente, que se guia por valores fundamentais amplamente partilhados; mas é também um homem do establishment e tem 78 anos, o que o torna, muito provavelmente, num presidente de mandato único. Por isso, o sistema político terá que se renovar para mobilizar e conseguir fazer diferente.

Mas, até lá, Biden já prestou um dos maiores serviços públicos da sua carreira: livrou-nos de Trump. Nem que seja só por isso, o mundo deve-lhe estar grato: Thank you Mr. Biden!