2019 carrega um número assustador: 29 vítimas mortais em contexto de violência doméstica – 22 mulheres, uma criança de dois anos e seis homens. Mais do que números, falamos de pessoas cuja vida foi roubada por quem fazia parte do seu dia-a-dia. É caso para dizer que o inimigo mora em casa.
Em Portugal, a violência doméstica é a principal causa de morte por homicídio. Entre 2004 e 2018 foram mortas 503 mulheres, mais de mil crianças e jovens ficaram órfãos e todos os anos são apresentadas cerca de 27 mil participações.
As estatísticas fazem soar os alarmes e têm contribuído para uma maior consciencialização pública, mas o cenário é ainda mais perturbador se pensarmos nos inúmeros casos não relatados.
A violência doméstica não tem estado fora da agenda política e Portugal tem dado passos importantes, nomeadamente com os planos nacionais de prevenção e combate a este flagelo, com a tipificação como crime público e a ratificação da Convenção de Istambul, tendo sido o primeiro país da União Europeia a fazê-lo.
Mas só avançámos meio caminho. Quando é noticiada mais uma morte pensamos se este número fica por aqui ou quando será a próxima. Há leis, planos e estratégias, mas o papel aguenta tudo. Mais do que novas leis, é preciso fiscalizar e avaliar o cumprimento das que existem e criar condições no terreno para que as respostas sejam eficazes.
Que Estado é este que não assegura os meios materiais e humanos adequados nas forças de segurança, nas autoridades judiciárias, no SNS e na Segurança Social?
Que Estado é este em que estar sinalizado não chega e em que a violência doméstica é sinónimo de processos arquivados sem provas e sem condenação, de desistência por falta de acompanhamento, pela morosidade e complexidade dos processos?
Que Estado é este que não garante apoio psicológico nas várias fases do processo, desde a denúncia até ao início de uma nova vida, porque faltam profissionais e as equipas multidisciplinares de apoio aos tribunais são uma miragem? As vítimas precisam de confiar no sistema e de ter apoio imediato do Estado, que tem responsabilidades constitucionais nesta matéria. Não é depois, porque a próxima vez pode ser demasiado tarde.
Que Estado é este em que é a vítima quem, em regra, tem de abandonar a casa, acompanhada dos filhos, ficando o agressor na habitação comum, e em que as casas abrigo estão lotadas?
As mulheres são a esmagadora maioria das vítimas, mas não podemos esquecer todos os homens e crianças que vivem este drama. São também preocupantes os dados sobre a violência no namoro, ao mesmo tempo que ganha maior dimensão entre os idosos.
A violência e a desigualdade andam de mãos dadas. As mulheres continuam a ser as maiores vítimas do desemprego, do trabalho a tempo parcial involuntário, da precariedade e dos baixos salários, dificultando a sua subsistência e dos seus filhos, o que pode fazer com que tenham de se sujeitar ao terror dentro de quatro paredes, num silêncio ensurdecedor, até poder ser tarde demais.
A outra metade do caminho que falta passa pela valorização do papel da mulher na sociedade, no trabalho e na família e pela igualdade na lei e na vida, e bem sabemos como esta continua a falhar.
Passa pela educação e sensibilização para a cidadania, o respeito e a igualdade. É sempre tempo de educar, em todas as idades, para estes princípios.
Não é mais tolerável o velho pensamento de que “entre marido e mulher não se mete a colher” ou “faça-as quem as fizer quem as paga é a minha mulher”, nem há qualquer romantismo no termo “crime passional”, que deve ser evitado em primeira instância pela comunicação social. É de crime público e de violação de direitos humanos que falamos.
O combate à violência doméstica é um desafio que se coloca a todos. Todos, homens e mulheres, devem “meter a colher”!
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.