Parecia que uma nova encíclica papal – “Todos irmãos” – no contexto da pandemia que percorre o mundo, iria, deveria, suscitar as atenções e uma forte focagem dos media. Puro engano. Alguns afloramentos, aqui ou acolá, comentários (poucos) de quem era quase obrigatório fazê-los, mas nada do entusiasmo mediático que qualquer desastre natural ou escândalo na alta roda concentra. Nada de primeiras páginas, debates extraordinários, expressivas análises.
Depois do silenciamento da “Laudato si/ Sobre o cuidado da casa comum”, e mesmo da sua subversão num texto reduzido a preocupações ambientais, seria de esperar outro relevo e presença mediática.
Não é possível acreditar que tal é o resultado de leituras da Encíclica, como a feita por sectores da extrema-direita francesa, considerando que “o papa Francisco é de hoje em diante oficialmente islamo-esquerdista”!
Será porque o Papa insiste que há “uma economia que mata”? Porque critica o “dogma de fé neoliberal” no mercado, “pensamento pobre, repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas perante qualquer desafio que surja”? Porque repudia a “especulação financeira” guiada por “uma ganância do lucro fácil”? Porque escreve que o “direito de alguns à liberdade de empresa ou de mercado não pode estar acima dos direitos dos povos e da dignidade dos pobres nem acima do respeito pelo ambiente”? Porque afirma a necessidade de reformar “a arquitectura económica e financeira internacional”?
Ou será que, percebendo as inquietações papais perante o desastre a que chegámos, não querem tocar, nem ao de leve, nem com os cuidados semânticos, tantas vezes eufemísticos, diplomáticos, da Santa Sé, no que os dominantes, a oligarquia financeira e os seus advogados e ideólogos, continuam a apresentar como a nova “infalibilidade” e destino fatal da humanidade: o capitalismo? Nada de dúvidas, nada de interrogações, sobre o sistema de exploração e agressão dos trabalhadores e dos povos, que é o capitalismo na sua versão neoliberal, com a sua natureza predadora, as suas lógicas imperiais, a sua hipócrita “ética” da responsabilidade social.
O prémio Nobel da Paz 2020 foi atribuído ao Programa Alimentar das Nações Unidas. Programa para tentar responder aos 690 milhões de pessoas (8,9% da população mundial) que enfrentam o flagelo da fome. Número que pode ser acrescido por efeitos económicos e sociais da pandemia em mais 130 milhões, segundo a ONU. Isto não terá nada a ver com o facto de um punhado de dois mil multimilionários possuírem/disporem, em 2019, de mais riqueza que 4,6 mil milhões de pessoas, 60% da população mundial?! (Somos todos irmãos, mas, continuando a bater no ceguinho (Orwell), uns mais irmãos que outros.) Ou de quase metade da população do planeta viver com menos de 4,9 euros/dia? Porque se prolonga tal situação quando a humanidade tem recursos e meios para lhe dar uma resposta definitiva?
É por isso que, não partilhando de toda a reflexão papal e continuando a dizer que não bastam os apelos-denúncias, por importantes e justos que sejam – foi já há dois mil anos que alguém disse que era mais fácil um camelo passar pelo buraco da agulha que um rico… – não podemos deixar de lamentar o silêncio de chumbo sobre a nova Encíclica.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.