Fomos recentemente surpreendidos com a venda de um token não fungível (NFT) que representa os direitos, neste caso a propriedade, de uma obra de arte composta por 5.000 micro-fotografias tiradas todos os dias ao longo quase de 14 anos.
O artista de nome Beeple vendeu essa obra de arte por 69 milhões de dólares (cerca de 58,6 milhões de euros), tornando-se assim num dos artistas mais bem remunerados sempre. Esta venda só foi possível porque foi feita com um token não fungível (NFT). Mas afinal o que é um NFT e como foi possível vender uma simples imagem por esta enorme quantia?
O conceito de fungibilidade é simples de explicar com um exemplo. As notas que temos nas nossas carteiras, referentes a uma determinada quantia, são todas diferentes, mas valem o mesmo. São diferentes porque serem numeradas. Representam, portanto, direitos fungíveis. Significa que a propriedade física da nota nos dá a propriedade daquela quantia exacta de valor pertencente à massa monetária. Já uma escritura representa um direito não fungível. Duas escrituras são sempre diferentes por definição, porque cada uma representa apenas uma propriedade específica, e apenas aquela.
O mesmo se passa com os tokens pois os há de ambos os tipos. As criptomoedas são representadas por tokens fungíveis, o que tem motivado a maioria das discussões à volta da tokenização de criptoactivos. Não obstante, podemos representar seja o que for com tokens não fungíveis (NFT) desde que a tecnologia e a lei assim o permitam. Aliás, exemplos como o som e a imagem têm sido particularmente interessantes.
Outrora, a propriedade da audição individual da música passava pela posse física da gravação que continha o seu registo. Enquanto os discos em formato vinil eram muito difíceis de copiar, as cassetes tornaram a pirataria num negócio e divulgação da web com a digitalização da música em formato mp3 levou este fenómeno ao limite. Aliás, hoje é particularmente fácil digitalizar uma qualquer audição, esteja ela gravada ou não, guardá-la e partilhá-la na web dentro dos limites da lei.
A audição da música, assim como o visionamento de filmes, passaram portanto a poder ser um bem público. Porém, a tokenização dessa audição poderá mudar tudo: ao guardarmos a música numa blockchain, o seu proprietário será quem detiver o token que lhe dá o direito à sua reprodução. Essa música até pode vir a ser copiada e difundida, mas esse token garante a propriedade da música original. Na música, até pode ser criado um token específico por audição, o qual deixa de ser válido a seguir.
Esta obra de arte do Beeple foi tokenizada com um NFT e o detentor do token será o seu proprietário. A imagem também pode vir a ser copiada, é certo, tal como podemos fotografar um quadro de Van Gogh. Mas enquanto, com um quadro, é a propriedade física deste que dita quem é o proprietário da imagem original, o mesmo acontece agora com o token de uma imagem que é arte em si mesma.
O valor elevado da transacção explica-se por si. Tudo passa pela relação entre oferta e procura. Neste caso, o mais interessante é que o leilão foi gerido pela própria Christie’s, uma casa de leilões das mais reputadas mundialmente. Pelos vistos, a procura e a valorização tácita da obra foram significativas, e é quanto basta para estabelecer um valor.
Para além da música e da arte, qualquer outro bem privado pode vir a ser tokenizado com NFT desde que a lei esteja preparada para isso. Neste momento, é fácil tokenizar tudo o que seja digital. Porém, tudo o que saia fora do digital tem que passar, ou pela ligação física às coisas (com tecnologia IoT), ou pelo reconhecimento legal da propriedade armazenada dessa forma.
Mais uma vez, a lei não está preparada para isso e será esse o passo necessário para que a economia toda possa beneficiar das vantagens indiscutíveis dos tokens não fungíveis como prova de propriedade, aumentando a confiança dos mercados, afinal o elemento mais importante de qualquer economia. Reguladores: vamos a isto?
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.