A empresa que lidero está a atravessar um processo profundo de transformação digital. À fibra ótica, junta-se a instalação de sensores vários em máquinas e armazéns e uma nova plataforma de gestão que integrará em tempo real a informação fabril, financeira e comercial. Os clientes passarão a aceder pela Internet a informação detalhada sobre o estado das suas encomendas. Da mesma forma, conseguiremos controlar a produtividade individual de cada operário e premiar o seu desempenho.

Até aqui nada surpreende. A única diferença em relação ao passado é que estas ferramentas são hoje muito mais baratas, acessíveis e com maior potencial transformacional. Mudaram os meios e as circunstâncias, mas não mudou o entendimento de que a atividade produtiva das pessoas e a informação do seu desempenho é uma parte do processo produtivo que deve ser controlada.

Contudo, a crescente acessibilidade destas tecnologias está a ter um impacto radicalmente diferente noutros planos, através da sensorização de espaços públicos e de equipamentos privados que geram fluxos contínuos de dados sobre as nossas vidas. Mas, enquanto a atividade profissional é regulada por leis laborais e fiscalizada por autoridades e sindicatos, não existe ainda um quadro legal e institucional suficientemente abrangente para proteger-nos da geração e utilização dos nossos próprios dados. O ritmo da evolução tecnológica contrasta com a inércia dos poderes públicos para educar a cidadania nas consequências da exposição digital e para proteger as pessoas dos riscos associados.

Tomemos como exemplo o carro conectado. Um carro pode já incorporar até cem sensores com capacidade de gerar dados e partilhá-los em tempo real. Mas essa informação pode facilmente incluir de forma automática a identidade dos próprios ocupantes. A seguir, é fácil imaginar novas apólices de seguros, personalizadas em função dos percursos mais frequentes, com maior ou menor sinistralidade; do número e da idade dos passageiros do carro ou até do cumprimento das normas de circulação que cada pessoa fizer. O que, em princípio, seria uma melhoria dos sistemas atuais, poderá ser um pesadelo no âmbito pessoal. Além de que, neste cenário tecnológico, que já é real, os carros poderão comunicar automaticamente qualquer infração cometida pelos seus ocupantes.

Surpreende comprovar como o carro, noutros tempos símbolo de liberdade, pode acabar por ser mais um férreo controlador dos nossos movimentos. Mas ainda surpreende mais que o seu sucessor nesse imaginário coletivo, o telemóvel, acabe por aliar-se a ele para criar novas formas de limitar essa liberdade da qual, noutros tempos, ambos foram os máximos expoentes.