A guerra que devasta a Ucrânia uma tragédia inominável. A Rússia levou a guerra às suas terras e ambos os lados se mostram incapazes de escapar a um longo historial de violência, exacerbado pela ambição de um tirano, Vladimir Putin. O seu desejo de obter o domínio total através de conquista territorial reflete uma visão que procura combinar as suas aspirações nacionalistas e imperialistas, num projeto totalitário que destrói tudo aquilo em que toca.
Mas a realidade é muito mais crua. A Rússia perdeu o lugar que ocupava no mundo e tenta agora impor-se pela força, pelo ardil, pela violência, pela crueldade. Felizmente, um país não se define apenas pelas ações do seu ditador, especialmente uma nação tão vasta e antiga como a Rússia, mesmo quando os seus espaços de liberdade se tornaram cada vez mais restritos.
Face a uma guerra sem quartel na Ucrânia, tornou-se comum assistir a uma certa demonização da arte e cultura russas. Como foi possível chegarmos aqui? Esta é uma cultura que nos brindou com alguns gigantes universais no mundo das Letras. A começar pelo profeta-escritor Lev Tolstói, a única figura capaz de rivalizar com Homero, Dante, Shakespeare e Milton.
Embora seja hoje reconhecido por obras-primas como “Guerra e Paz” ou “Anna Karenina”, as suas obras mais curtas, como “A Morte de Ivan Ilitch”, “Hadji Murat”, “O Diabo e outros contos” ou “A Sonata de Kreutzer”, revelam o seu estatuto semidivino nas Letras.
No entanto, não podemos deixar de mencionar Puskhin, Gogol, Lermontov, Turgenev, Leskov ou Blok. E também autores do século XX, nomeadamente Ivan Bunin, o primeiro autor russo galardoado em 1933 com o Prémio Nobel da Literatura, Boris Pasternak ou Vassili Grossman.
Durante muito tempo, os leitores portugueses só tiveram acesso às traduções em segunda mão dos autores russos. Traduções vertidas de traduções francesas ou inglesas que, por sua vez, adulteravam a versão original.
O estilo de Dostoievski é, na verdade, mais visceral, e não tão romantizado, como em algumas traduções europeizadas. Em Portugal, deve-se essencialmente a Filipe Guerra, Nina Guerra, mas também a António Pescada, um trabalho que procurou cobrir, com rigor, o vasto património da literatura russa, nos seus mais variados géneros.
Falecido a 7 de julho, Filipe Guerra formou-se na Faculdade de Letras de Lisboa e colaborou com os mais variados jornais e revistas literárias. Não tem faltado reconhecimento à dedicação e empenho de Filipe e Nina Guerra enquanto tradutores, ambos galardoados com o prémio da Sociedade Portuguesa de Autores e do Pen-Clube Português pelo conjunto das suas traduções de clássicos russos.
Se hoje o nosso universo literário de língua portuguesa é mais rico, tal deve-se também aos frutos desse trabalho laborioso e discreto que é recriar as grandes paixões e angústias da alma numa outra língua, sem perder o espírito original. Nunca é demais sublinhar que o trabalho do tradutor é pouco reconhecido em Portugal, uma injustiça que raras vezes é corrigida.
Sem o trabalho prolífico do casal Guerra não teríamos tido um acesso tão rico ao universo de Bulgakov, no qual o poder redentor do amor resiste em tempos de opressão, ou à inquietude dos protagonistas de Tchékov, num mundo que atravessa grandes transformações sociais, ou ainda ao pessimismo existencial de Leonid Andréev, à culpa e redenção através do sofrimento, tão presentes na obra de Dostoiévski, sem esquecer a poesia de Anna Akhmatova, que denuncia os horrores estalinistas.
Devemos muito aos tradutores que mostram uma capacidade inesgotável de entrega ao seu ofício. Não roubam protagonismo, antes assumem um papel fundamental na preservação das vozes e visões do passado e do presente.