Desprovida de acentos, consoantes duplas ou perigosas ligações hifenizadas, a energia escapou à fúria transformadora do Acordo Ortográfico. Logo ela, que denota o que se transforma incessantemente.

Contrariamente às comissões homologadoras, que produzem normas e cancelam, palavras e muito mais, a energia não se produz, nem se consome – simplesmente, transforma-se. Transita de uma forma a outra, de um estado a outro, perde qualidades pelo caminho (a entropia aumenta), mas a quantidade mantém-se.

Esta realidade física, que a ciência há muito formalizou, está em contradição com a nossa percepção do trânsito da energia, moldada por uma perspectiva linear que “vê” a energia ser “produzida” nas minas de carvão ou nos poços petrolíferos, ser “refinada”, enobrecendo-se, nas refinarias como nas centrais eléctricas, onde “vemos” as “perdas” (da combustão) esfumarem-se na atmosfera, e finalmente ser “consumida” nos motores dos automóveis, nas caldeiras de aquecimento dos edifícios, nas fábricas, nos fogões, nas lâmpadas e nos frigoríficos lá de casa, “perdendo-se” definitivamente, mas deixando uma factura a pagar.

Esta visão linear, preponderante, embora cientificamente errada, da energia, corresponde à concepção extractivista, cultural e politicamente dominante na “sociedade de consumo”. Ela considera a natureza como matéria-prima e tem como mote “extrair-produzir-descartar (usar e deitar fora)”. A dupla consciência de que os recursos que podemos extrair do planeta são finitos e finita é também a sua capacidade de absorção de “lixo” (resíduos sólidos e líquidos, emissões atmosféricas poluentes, etc.), leva agora a trocar o velho paradigma da economia linear pelo novo da economia circular.

O modelo da economia circular é inspirado na natureza – no conhecimento que dela temos graças à evolução científica. A natureza só aparentemente é linear – atrás da simplicidade de uma recta esconde-se sempre uma teia complexa de interacções entre tantos pontos e de funções não-lineares que a matemática nos permite descodificar. Nem os grandes ciclos (água, carbono, azoto, etc.), nem o metabolismo dos organismos vivos, nem as cadeias alimentares, nem o equilíbrio dos ecossistemas, podem ser reduzidos a uma representação linear.

“Linearizar” (isto é, simplificar) processos e problemas ajuda muitas vezes a encontrar interpretações ou soluções úteis – mas estas serão sempre incompletas e, se não forem devidamente contextualizadas, ou se forem abusivamente generalizadas, podem conduzir a resultados errados. A Terra é maravilhosa, mas não é, definitivamente, plana.

O desenvolvimento sustentável no nosso planeta só é imaginável num quadro de economia circular onde a “licença para gastar” é substituída pelos imperativos da frugalidade na utilização dos recursos (e da sua reutilização e reciclagem) e da preservação do capital natural, económico e social. A energia tem um papel fundamental na construção deste modelo circular, desde logo ao nível da criação de um novo “metabolismo urbano”, pois é nas cidades que se concentram população e utilização de energia.

A União Europeia adoptou, em 2007, uma política integrada de clima e energia. Daqui decorre a transformação da energia, enquanto construção social e realidade económica, conhecida como transição energética. Subentende-se transição para uma economia energética de baixo carbono. Importa fazer três anotações:

1ª) Esta não é a primeira e não será a última “transição energética”. Por exemplo, no fim do século passado, assistiu-se a uma importante transição de monopólios nacionais de electricidade e de gás natural para mercados europeus liberalizados.

2ª) Tecnicamente, esta não é, apenas, uma mudança do combustível dominante, como aconteceu várias vezes no passado, substituindo combustíveis fósseis por fontes renováveis de energia. Esta transição inclui, simultaneamente, mais duas dimensões tecnicamente relevantes: uma, inovadora, é a digitalização da energia; outra, menos original, porquanto configura um certo regresso às origens da industrialização da energia, é a descentralização (sendo que a gestão local dos recursos energéticos tem agora que ser articulada com a gestão de redes e mercados supranacionais de electricidade e de gás, então inexistentes). Estas dimensões são indissociáveis; elas constituem o espaço tridimensional invariável onde cada país inscreve a sua própria transição energética.

3ª) Da integração das políticas de clima e energia decorrem integrações mais vastas, que incluem os sectores tradicionais da oferta (petróleo, gás natural e electricidade), novas fileiras de oferta (p. ex. “autoprodutores”) e todas as áreas da procura de energia, sem excepção. Esta transição energética marca assim o fim dos silos da energia (cadeias de valor verticalmente integradas mas horizontalmente estanques – energia “linear”) e o início de uma era de conectividade generalizada de todos os recursos energéticos, independentemente do seu estatuto (oferta, procura, armazenamento…), da sua localização e do vector associado (electricidade, gás, calor…).

Esta “globalização” da energia é estimulada pela globalização da política climática: uma unidade de energia deixou de ser apenas uma unidade de energia, pronta para a troca comercial – ela passou a ter, associada, a etiqueta de uma certa quantidade de emissões de gases de efeito de estufa que influencia, crescentemente, o seu valor económico. Esta “circularidade” da energia só é viável quando sustentada numa rede digital que permite a circulação “instantânea” da informação associada a todos os recursos energéticos. Aos fluxos físicos e comerciais de energia sobrepõem-se agora, inextricavelmente, fluxos paralelos de informação e fluxos contabilísticos de emissões de gases de efeito de estufa.

Em resumo: a energia transforma-se – na natureza, segundo as leis da termodinâmica, e, como construção social, seguindo a evolução da técnica e das políticas públicas. O seu carácter transformacional, nestes dois planos, é empiricamente irrefutável. A questão que agora colocamos é diferente: trata-se de avaliar o seu potencial transformativo – isto é, perceber em que condições e até que ponto ela tem o poder de transformar a sociedade em que é construída e utilizada, em que medida a “transição energética” contribui para uma transição mais ampla, nomeadamente da organização das relações entre capital económico, social e natural. A energia transforma se…

A energia transforma se, antes de mais, quisermos que ela transforme e tivermos uma ideia clara sobre o sentido da transformação desejada. Por exemplo, quem queremos ver como protagonistas da transição energética: os cidadãos e as comunidades locais, com as respectivas organizações e empresas, porque é ao nível local que a transformação se joga e aí que se pretende criar e reter valor? Os “campeões nacionais” da energia, porque segundo uma velha máxima importada de Detroit o que é bom para eles é bom para o país? Ou as multinacionais da energia, porque são as que trazem mais dinheiro no bolso, logo maiores promessas de electricidade barata para todos?

Como não queremos (sociedade, parlamento) responder com clareza a esta pergunta – e a outras perguntas básicas semelhantes – sucessivos governos decidem a seu bel-prazer, sem consistência inter-sectorial e inter-temporal. Escolhem-se instrumentos sem questionar seriamente as consequências de longo-prazo que tais escolhas implicam para a sociedade, para a inovação e para a economia.

Sem ir muito atrás no tempo, recordemos apenas como tem sido tratada a questão da gestão de bens escassos essenciais para a descarbonização da energia, tais como o domínio público hídrico ou a capacidade de ligação de geradores renováveis às redes eléctricas.

No primeiro caso, um governo decidiu concessionar ao campeão nacional de electricidade, sem concurso público, o grosso do património. Entretanto, o campeão, que de nacional já só tem o nome, pois os accionistas vão e vêm de todos os continentes, resolveu vender as centrais hidroeléctricas – encarregando a banca de organizar o procedimento concursal de venda dos seus preciosos activos.

Logo no início do século, o governo decidiu promover energias endógenas. A administração pública não foi capaz de traduzir um desígnio claro em procedimentos igualmente claros, resultando, ao fim de pouco tempo, uma enorme confusão na gestão da atribuição dos pontos de ligação dos produtores (sobretudo eólicos) à rede.  Vem novo governo e decide leiloar essas capacidades, constituindo lotes e obrigando os concorrentes a incorporar conteúdo nacional nos seus projectos de energia eólica.

A estratégia resultou: os consórcios vencedores eram maioritariamente nacionais e foram erguidas em Portugal várias fábricas para a construção dos equipamentos necessários: torres, pás, geradores, etc.. Criou-se um “cluster eólico” que desde então exporta componentes para todo o mundo. Mas mudam os governos e logo há quem anuncie impostos retroactivos e quem ameace com taxas extraordinárias; os investidores perdem a confiança e vendem. Resultado: hoje, na lista das oito empresas com mais de 100 MW de potência eólica instalada em Portugal, não há uma única portuguesa.

Mais recentemente, os leilões fotovoltaicos têm batido recordes mundiais de baixo custo, mas entre os vencedores não há nenhuma empresa portuguesa, e a incorporação nacional é praticamente inexistente.

Sempre à procura de dinheiro, para o tesouro e para baixar tarifas de electricidade, os governos do séc. XXI desnacionalizaram completamente a energia.

Nem o país nem a transição energética teriam alguma coisa a ganhar com a nacionalização das empresas de energia. A solução, para descarbonizar, não é nacionalizar, mas comunitarizar: facilitar de facto a criação de comunidades de energia, privadas ou cooperativas, residenciais, industriais ou agrícolas, responsáveis pela gestão dos seus próprios recursos energéticos descentralizados. Este é o único antídoto eficaz contra a tendência dos oligopolistas a abusarem do seu poder e contra a tendência do parlamento em abdicar do seu. Se houver transição energética em Portugal, ela será comunitarista – e será uma bela transformação democrática.

A energia transforma-se; mas só transforma se (nos) quisermos transformar.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

Jorge Vasconcelos assina este texto na qualidade de autor do ensaio “A energia em Portugal”, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.