O debate em reunião plenária na Assembleia da República sobre os projetos de lei do Pessoas-Animais-Natureza (PAN) e do Bloco de Esquerda (BE) que visam impedir o recurso a matilhas como meio de caça, além de uma petição pública com o mesmo objetivo, já estava agendado para o dia 29 de maio desde há muito tempo. Mas o excelente resultado obtido pelo PAN nas eleições europeias, a 26 de maio, seguindo-se o elogio público e abertura para “estreitamento da relação” na próxima legislatura por António Costa, a 27 de maio, conferem um interesse acrescido ao desenlace das propostas de proibição das matilhas na caça.
Na noite de 26 de maio, celebrando a eleição do cabeça-de-lista Francisco Guerreiro como eurodeputado e a quase triplicação dos votos em comparação com 2014 (passou de cerca de 56 mil para cerca de 168 mil), os militantes gritavam “EuroPAN” enquanto o líder André Silva avisava que o partido “não é uma moda” e “ganhará cada vez mais voz”. No dia seguinte, em entrevista à SIC, o primeiro-ministro e secretário-geral do PS, António Costa, admitiu a possibilidade de firmar um acordo de incidência parlamentar com o PAN na próxima legislatura.
“Nada obsta em sentido contrário. Nestes três anos e meio, temos tido uma excelente relação com o PAN. Reparem que o PAN nunca votou contra as propostas do Governo de Orçamento do Estado nesta legislatura. E em alguns casos creio que até votou a favor”, salientou Costa. “Tem havido uma relação de grande proximidade com o PAN e de boa colaboração. Relação que pode continuar e estreitar-se”, acrescentou.
É neste contexto que o debate sobre as propostas de proibição das matilhas na caça poderá originar leituras políticas mais amplas. Ao longo da legislatura, várias iniciativas do PAN foram chumbadas pela bancada parlamentar do PS, com destaque para a recorrente proposta de abolição das touradas. Essa e outras causas “fraturantes” do PAN costumam suscitar debates acesos entre os deputados socialistas, levando até a alguns desalinhamentos nas votações. Por seu lado, o PCP e o PEV têm apostado numa estratégia adversativa, ou mesmo de hostilização relativamente ao PAN, enquanto o BE procura marcar presença com iniciativas próprias nas mesmas causas.
Prática cinegética mais responsável
O projeto de lei do PAN visa alterar a lei da caça “impedindo o recurso a matilhas como processo de caça”. Em causa estão práticas “prejudiciais para o ambiente” e “pejadas de violência e brutalidade contra os animais”.
Na exposição de motivos, o deputado André Silva evoca a legislação que, em Portugal, prevê “a existência de vários processos de caça, entre os quais os designados cães de caça. Conforme se trate de caça menor ou maior, poderão ser usados até dois cães por caçador ou matilhas. No primeiro caso, o cão acompanha o caçador para ir buscar a presa depois de morta e trazê-la ao caçador. No segundo caso, especificamente no processo de caça a corricão, o caçador desloca-se a pé ou a cavalo para capturar espécies exploradas para fins cinegéticas com o auxílio de cães de caça, com ou sem pau, no qual podem ser utilizados até 50 cães, a designada matilha”.
“Segundo a lei, a função da matilha é proceder ao levantamento da caça para facilitar a sua captura pelos caçadores”, prossegue. “O que se verifica, no entanto, é uma verdadeira luta entre a matilha e as presas. Os cães acabam por funcionar como arma contra o animal a ser caçado, seja uma raposa ou javali, que resulta na morte ou quase morte deste. A verdade é que no decurso deste ato muitas são as vezes em que também os cães usados acabam por sucumbir ou ficar gravemente feridos”.
Para o deputado e líder do PAN, “esta situação consubstancia uma verdadeira incoerência legal”, na medida em que há um decreto-lei que “vem já proibir a luta entre animais. Note-se, proíbe a luta entre animais e não somente a luta entre cães”.
“O legislador considerou censurável a promoção de luta entre animais, designadamente entre cães, por concluir que a mesma é degradante para o ser humano e pode potenciar o carácter agressivo de determinados animais”, sublinha Silva. “Então, tratando-se da luta entre um cão e uma raposa, já é menos censurável? E se forem trinta ou quarenta cães contra uma raposa? Não cremos. Recorde-se ainda que os cães e as raposas fazem parte da mesma família (canidae). O que será que os difere tanto para que uns mereçam proteção e outros não?”
“No entanto, a proibição imediata de utilização das matilhas actuais poderia colocar ainda mais em causa o bem-estar e sobrevivência dos cães que as compõem, pelo que se considera que apenas as matilhas já existentes e devidamente legalizadas possam continuar a participar na actividade cinegética, sendo proibido o licenciamento de novas matilhas ou o aumento das existentes”, ressalva o deputado no projeto de lei.
“Se efetivamente os caçadores e a indústria que representam se preocupam com o ambiente, com a biodiversidade, com o bem-estar animal, então deveriam querer melhorar as suas práticas e ter um impacto mínimo nos ecossistemas. No entanto, apenas demonstram vontade em continuar a fazer as coisas ‘como sempre fizeram’, escudando-se na narrativa da ‘tradição’ e na defesa do ‘mundo rural’, esquecendo que a evolução das práticas é normal e benéfica para todos. Especialmente quando essas práticas se demonstram prejudiciais para o ambiente e são pejadas de violência e brutalidade contra os animais. No fundo, o que se procura com esta alteração legislativa é uma prática cinegética mais responsável, com a qual certamente muitos caçadores concordarão”, conclui.
No diploma do PAN destaca-se a proposta de redação do Artigo 31º, estabelecendo que “quem promover, por qualquer forma, lutas entre animais, incluindo no âmbito da atividade cinegética, nomeadamente através da organização de evento, divulgação, venda de ingressos, fornecimento de instalações, prestação de auxílio material ou qualquer outra atividade dirigida à sua realização, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.
Impedir a luta entre animais
O projeto de lei do BE começa por indicar que “atualmente está prevista a possibilidade de caça com recurso a matilhas de cães. Conforme se trate de caça menor ou maior, poderão ser usados até dois cães por caçador ou até 50 cães, ou seja, a designada matilha. No caso de caça menor, o cão acompanha o caçador para ir buscar a presa depois de morta. No caso de caça maior, os cães funcionam mesmo como arma contra o animal visado, podendo existir luta entre os cães e a presa. Neste processo, os cães podem também sofrer vários ferimentos”.
“Noutros contextos, a luta entre animais é valorada negativamente no ordenamento jurídico e é mesmo proibida a luta entre animais (Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de outubro, no seu Artigo 31º). O mesmo artigo prevê, porém, a exceção a eventos de carácter cultural. Consideramos que a caça com matilhas deve ser interditada como forma de impedir a luta entre animais, no caso entre cães e presas, sejam raposas, javalis, veados, corços ou outros”, defendem os bloquistas.
“Cientes das condições em que são mantidos os cães das matilhas existentes, e de forma a garantir que essas condições não sejam ainda mais deterioradas, propomos igualmente um período de transição. Assim, as matilhas atualmente registadas poderão manter a atividade, não sendo permitido o licenciamento de matilhas novas, nem adicionar cães às matilhas existentes”, propõem.
Em suma, o BE propõe uma redação do Artigo 31º similar à do projeto de lei do PAN, tal como também ressalva um período de transição através da seguinte norma: “As matilhas atualmente registadas poderão manter a atividade, no entanto, não será permitido o licenciamento de matilhas novas, nem adicionar cães às matilhas existentes, sendo que para este efeito também se incluem as crias de fêmeas reprodutoras da matilha”.
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