Eram nove da manhã e já estava na fila para entrar no Centro de Emprego. Fazia alguns anos que estava desempregado. Ia fazendo contactos com possíveis projectos de trabalho e sonhando: “agora é que vai ser”. Alguns dias acordava e confiava nas suas capacidades. Noutros duvidava que alguém apostasse nele quando já estava com bem mais de 40 anos.
É certo que tinha formação superior, mas isso já parecia ser de outra vida. Relembrava as empresas onde se tinha apresentado com a carta do IEFP, em áreas que, embora desfasadas do que alguma vez tinha feito ou pensado fazer, pareciam ter pontes de contacto, mas que depois se revelavam longe disso e pagas abaixo do valor que recebia de prestação social devido à situação de desemprego (demorou meses a começar a receber, mas era qualquer coisa).
Naquele dia encaminharam-no para mais um curso de formação, agora de inglês, ele que tinha tido oito anos de aprendizagem desta língua e que falava e escrevia com alguma facilidade. Ao sair daquele edifício sentia-se triste, amargurado, sem esperança que algo mudasse. Como se ninguém o visse, a si e à sua condição. Como se ninguém olhasse para ele, enquanto pessoa, diferente das outras, com os seus interesses e aptidões, com a imagem de si mesmo afectada pela ausência de realização profissional.
Pensou pedir ajuda. Tinha consciência que a forma como se sentia estava a afectar-lhe o discernimento, a forma como tomava as pequenas e as grandes decisões, como conseguia reflectir sobre as possibilidades e a preocupação com o dinheiro que lhe poderia faltar, ainda mais amanhã do que hoje, para pagar o empréstimo à habitação e do automóvel.
A irritação era crescente e a paciência para os filhos decrescente. Sentia-se menos desejado e desejava menos. Engordou uns quilitos e o exercício físico deixou de fazer parte das suas rotinas. No centro de saúde, o médico de família encaminhou-o para a psicóloga, mas foi avisando que seriam uns meses de espera e que se tivesse alguma alternativa mais rápida… Todavia foi apoiante, propôs um antidepressivo, o que ainda assim seria melhor para lhe atenuar o sofrimento.
Começando com duas ideias…
Desenvolver as pessoas e prevenir são duas ideias de base, estratégicas para as políticas públicas, a partir das quais podemos desenhar as acções na saúde, educação, habitação, segurança ou justiça. Para que isto aconteça precisamos de instituições cada vez mais inclusivas e de alguns Planos transversais, atravessando todas estas áreas de políticas, como a transição digital ou a resposta à crise climática. Estas políticas precisam de mais avaliação e disseminação da informação relativa aos seus impactos.
Esta avaliação deve passar por pelo menos dois níveis: pelos governos, por unidades de ciência comportamental (à semelhança do que acontece em alguns países anglo-saxónicos, permitindo testar de forma sistemática processos e políticas públicas antes de serem disseminadas e melhorar transversalmente as práticas da administração) e avaliações mais macro, posteriores à implementação das políticas.
A sustentabilidade das políticas públicas necessita de uma análise sobre impactos a prazo, tão difícil face aos ciclos políticos curtos. Deveria, por isso, ser responsabilidade de uma entidade independente, menos sujeita a enviesamentos cognitivos, como é exemplo o viés de desconto sobre a recompensa futura (consiste em atribuir um valor mais baixo a algo que poderemos obter no futuro, quando comparado com algo que obtemos no presente, entrando em linha de conta com a probabilidade de vivermos para dele usufruir e com o prazer que daí decorrerá).
A Fundação Calouste Gulbenkian, em trabalho conjunto com a School of International Futures, propõe uma metodologia de avaliação do impacto das políticas públicas nas futuras gerações, de modo a permitir uma maior consciência do que resulta das políticas que estão hoje em decisão: para nós, para os mais jovens de hoje no resto das suas vidas e para aqueles que de nós descenderão e a quem deixaremos um legado.
O desenvolvimento das pessoas
O desenvolvimento das pessoas e das suas competências deve ter em conta o contexto e a cultura. Deve permitir promover a autonomia e a mobilidade social, a partir de balanços de competências e de uma maior personalização das políticas públicas, como as de empregabilidade, mais actualizadas face ao conhecimento científico da psicologia e articuladas com o, tão inenarravelmente inacessível como indispensável, apoio psicológico às populações através do sistema de saúde.
Seja para a tão desejada transição digital e redução do diferencial de competências dos portugueses nesta área face à média da OCDE, seja para o desenvolvimento de competências técnicas de outra índole, são necessárias competências facilitadoras (cujo termo é mais esclarecedor do que o comumente usado soft skills), como o trabalho em equipa, o relacionamento interpessoal ou a regulação emocional. A um nível mais macro é preciso aprofundar e actualizar permanentemente o nosso conhecimento sobre o desemprego para além das características demográficas e de qualificação para as causas da sua existência e manutenção.
A prevenção
Para prevenir temos que ir para além do básico em literacia em saúde. Portugal apresentou recentemente aparentes melhorias neste indicador, mas, num olhar mais atento para o que este mediu e concluiu efectivamente, devemos continuar preocupados e investir na promoção da literacia em saúde.
Pessoas mais literadas também perceberão melhor quando devem recorrer ao sistema de saúde e onde (se ao centro de saúde se a uma urgência), se precisam de mudar os seus comportamentos por si próprios ou pedir ajuda de um profissional para o fazer. Ou até, se afinal não se trata de nenhuma situação factualmente preocupante. E, por isso, a acessibilidade à saúde continua a ser um elemento central para a redução de iniquidades. A simplificação do serviço nacional de saúde e das suas estruturas é importante. A remoção de obstáculos, como aliás recomendou a OCDE para a saúde mental, é prioritária.
Acresce a necessidade de nos centrarmos nos resultados de saúde da pessoa que utiliza os serviços e de ultrapassar a lógica quantitativa dos actos e da simples redução dos sintomas, isto no que concerne ao financiamento em saúde. Quem acede aos serviços de saúde é uma pessoa e por vezes sofre de uma doença, mas não é certamente um doente.
Ideia três… desenvolver instituições inclusivas
Este binómio prevenção-desenvolvimento das pessoas é crucial, no âmbito de uma Agenda de Prevenção de Desenvolvimento das Pessoas para a Coesão Social e Competitividade. É a partir dele que construímos pessoas mais resilientes e adaptadas às necessidades do país, mas também pessoas mais saudáveis e com bem-estar. Estas pessoas são as que podem ajudar a desenvolver as organizações nas quais trabalham e, por sua vez, a fazer crescer a economia.
As pessoas fazem as instituições, mas as instituições e organizações têm também elas que ser resilientes, credíveis e inclusivas para além das pessoas que as liderem no momento. Para isso precisamos de uma administração pública menos hierarquizada, menos partidarizada, mais autónoma (a começar em cada um dos seus trabalhadores), com mais instrumentos para o reconhecimento das pessoas e a valorização das suas competências, mais responsabilizadora da sua acção e transparente nos seus indicadores de gestão, incluindo o bem-estar organizacional, correlacionado que está com o valor acrescentado que as organizações entregam.
Num país e região do mundo com taxas de natalidade baixas e com o envelhecimento populacional crescente e nem sempre saudável (em Portugal, à nascença temos 59,2 anos de vida saudável pela frente face aos 64,6 da UE), com cada vez mais tecnologia em saúde disponível (embora por vezes a preços naturalmente incomportáveis), a saúde tem mesmo que ser muito mais do que remediar doença, ou do que ausência de doença. Caso contrário, não haverá como pagar pensões e recuperar as pessoas em situação de doença e vai alargar-se o fosso entre quem tem dinheiro ou não para pagar a saúde. Isto é válido para as pessoas individualmente e para Estados, como aliás já hoje acontece.
A prevenção não diz respeito apenas à saúde e à doença, mas também ao ambiente e ao seu equilíbrio. Perceber como os nossos comportamentos lesam ou não o nosso ambiente, enquanto consumidores ou enquanto empresários ou líderes no geral, é crítico no combate à crise climática, bem como a forma como nos relacionamos com a natureza é importante para a nossa saúde e bem-estar.
Ao longo dos séculos, temos assistido a uma melhoria gradual das nossas condições de vida. Podemos sentirmo-nos mal com a nossa situação pessoal. Podemos querer que o nosso país seja melhor do que os outros e melhor do que está neste momento em vários indicadores. Podemos querer que não haja tanta gente com tão pouco e tantos sem conseguirem ter esperança num futuro melhor ou até sentirmos raiva pela degradação ambiental do planeta. Todavia, nenhum destes sentimentos, emoções e ambições contradiz os factos que evidenciam as conquistas que a racionalidade e a ciência nos têm permitido obter face às sociedades do passado.
O passado, em termos de macro indicadores, não é confundível com o nosso sentimento de perda, ao dizermos que quando éramos jovens é que era bom. Era bom… pelo facto de sermos mais jovens e se nos lembrarmos apenas do que tínhamos… de bom, como mais cabelo e porventura mais saúde, se for esse o caso.
Há 47 anos, quando nasci, pouco antes da Revolução dos Cravos, o país estava prestes a despertar para a liberdade. Ficava melhor do que estava até então, só por isso. Mas em seguida transformou-se muito mais e passou de um dos piores nos indicadores de mortalidade infantil para um dos melhores a nível mundial. Passou de uma sociedade em que a mulher tinha que pedir autorização ao marido para poder sair do país para uma sociedade onde as mulheres são quem mais frequenta o ensino superior (49% das mulheres entre os 25 e os 34 anos têm formação superior face a 34,6% dos homens). E mais recentemente, recuando apenas a 2002, passámos de um país com 45% da população entre os 18 e os 24 anos a terem abandonado precocemente a escola para 8,9% em 2020.
Nem tudo está mal, nem tudo está bem. O que fazemos hoje e todos os dias enquanto contributo para o país nos mais diferentes papéis é relevante e tem feito estas diferenças. As escolhas e prioridades políticas também. Por isso, a definição dos programas partidários que levarão às políticas públicas de amanhã são tão importantes. A democracia tem como mínimo a expressão através do voto, mas para ser dinâmica e saudável tem que ter muito mais e a participação no debate público das opções de governação é sempre indispensável. Assim, aqui ficam estas três ideias… para que se repitam menos as estórias como aquela com que comecei este texto.