1. Inicia-se este artigo com uma afirmação bem conhecida: o dólar tem ainda um peso esmagador no sistema monetário internacional ou, em linguagem menos precisa, mas mais corrente, domina as trocas comerciais no mundo inteiro, de forma avassaladora. O que não estará tão interiorizado é a dimensão real da economia dos EUA posicionar-se muito aquém da intervenção internacional do dólar (embora continue como primeiro país em PIB corrente). Em valores aproximados, o dólar americano partilha em cerca de 80% das trocas e pagamentos mundiais, de forma desigual consoante os diferentes blocos económicos e Continentes, enquanto o PIB (nominal) rondará os 26%. Uma tamanha desproporção!

Como se encaixa este desajuste entre o desempenho do dólar americano (há outras moedas designadas de dólar) e a sua economia?

Não há uma resposta simples. Mas, a principal razão, entendo, assenta no seu poderio militar global e também na sua história política, embora, como mostra a história, este poderio à partida não seja sinónimo de ganhador, basta relembrar a guerra do Vietnam. Mas talvez seja de juntar, como vários analistas o fazem, o elevado prestígio das suas escolas de ensino superior, que atraem uma elevada percentagem de doutorandos e quadros técnicos estrangeiros, muitos deles regressando aos seus países para o desempenho de altos cargos na economia e gestão de empresas e na política. Países da dimensão da China, Índia, Brasil enquadram-se neste conjunto.

2. A importância do dólar na economia mundial tem uma história longa. Arranca com a Primeira Guerra mundial e segue um percurso de consolidação, embora aqui e ali objecto de controvérsia, como ficou célebre, na década de 60, na expressão de Giscard d’Estaing, o “privilégio exorbitante”, a respeito do dólar como moeda global dominante.

Como aqui se escreveu em tempos: “é o dólar que, na Segunda Guerra, ainda mais se reforça, inclusive pelos lucros das vendas de armamento e dos empréstimos financeiros aos seus parceiros e, depois, com o plano Marshall de apoio à reconstrução da economia europeia, acentua o estatuto de única moeda forte, substituindo, assim, naturalmente a libra nas suas funções, designadamente como moeda de reserva mundial e principal veículo de transação comercial e serviços”.

Mais recentemente, desde os fins do século XX/ inícios anos 2000, a controvérsia sobre o dólar como moeda global acentuou-se, assumindo várias frentes e iniciativas com maior ou menor sucesso. Podemos aqui incluir o lançamento do Euro que poderia ter tido um papel significativo e não titubeante, como tem sido o caso. Mas, sobretudo, o processo de desdolarização da economia mundial tem vindo, pouco a pouco, a ganhar consistência, designadamente sob o impulso da China, devido à sua ascensão na economia mundial.

A guerra da Ucrânia, com as sanções económicas indiscriminadas contra a Rússia, gerou um clima de desconfiança alargado, sobretudo em economias emergentes que tinham pouco a ver com a guerra. Os países do Sul Global reprovaram ou não apoiaram as sanções e mostram-se preocupados com potenciais represálias dos EUA, o que desencadeou certos movimentos como a recomposição das reservas cambiais dos seus bancos centrais (segundo o FMI 70% em 1990, 2ºT. 2024 58,2%) na tentativa de reduzir a dependência em dólares dos seus activos, bem como fomentou o aumento das reservas em ouro e a procura de meios alternativos de pagamento das trocas, expulsando/reduzindo o dólar de fatias já largas nas transações internacionais, p.e. áreas da energia e outras matérias-primas e mesmo na venda de equipamentos entre Brics e Brics e países terceiros.

E aqui, a acção dos BRICS tem contribuído para desenhar e desenvolver alternativas que vão consolidando “a expulsão” do dólar. Esta é uma tendência cada vez mais arreigada nos BRICS e com influência nas economias emergentes dos países do Sul Global.

Perspectivas com Trump

Ainda é cedo para identificar com rigor os efeitos das “políticas”, algo errantes, de Trump na esfera mundial.

Uma política protecionista é adquirida, mas o grau de proteccionismo ainda não é claro e até alguma comunicação social tem vindo a “adocicar” as taxas aduaneiras, alegando que vários dos conselheiros de Trump são mais generosos, defendendo “a selectividade das taxas” a áreas da defesa e soberania alimentar.

Sejam quais forem, não há dúvidas que uma guerra económica sobretudo entre EUA e China vai ser real. Segundo a informação dominante, a China tem vindo a preparar-se para essa guerra, tendo já definidas as linhas vermelhas de actuação futura.

Essa não é a realidade na União Europeia que tem dado pouca atenção às questões estratégicas, devido à grande instabilidade política em França e Alemanha, onde concentra a grande preocupação nos problemas nacionais. Por outro lado, países como a Áustria também não se encontram em bom momento político. Aliás, é difícil indicar um país europeu estabilizado. E, sem os países a funcionar, os órgãos da UE menos ainda fazem de útil.

A situação, na realidade, é a de uma Europa dividida, sem estratégia para responder às políticas de Trump.  Dividida quanto à forma de encarar a dívida pública, onde é normal falar-se de “três Europas” (Norte, Sul e Leste), na energia nem é bom insistir na profunda divisão, no mercado comum financeiro que não existe e quanto ao Mercosul a situação é pública. E não vale carregar o ambiente com outros domínios de desentendimento que são muitos. Temos uma Europa desarmada de respostas.

Começa a vingar a sensação de que a União Europeia perdeu capacidade para enfrentar as fragilidades. Esta sensação é, em si, uma grande fragilidade. Claramente, os problemas globais nesta situação pouco contam e, alguns países tendem a entrar em negociações bilaterais com os EUA para resolver certas questões que são globais e há quem atribua dentro daquela máxima que “não há almoços grátis” que a visita muito recente de Georgia Meloni a Mar-a-Lago para um jantar pode “indiciar” esse caminho, o que levará outros países a tentar segui-la. Mas uma coisa é certa. A Europa está em má posição para responder, quaisquer que sejam os caminhos escolhidos pelos magnatas de Trump.

O que vai acontecer ao dólar, não em termos de câmbio mas de desdolarização neste contexto?

Muitos cenários são possíveis. Mas uma situação é certa, no domínio das trocas mundiais antecipam-se alterações significativas em termos de preços e quantidades transacionadas. E, assim, face à tendência em curso de encontrar alternativas para a substituição da intervenção do dólar uma baixa previsível da participação dos EUA nas transacções mundiais só vai emagrecer o papel do dólar. Com “as ameaças” avançadas de Trump ao Canadá, ao Panamá e à Gronelândia, o ambiente mundial só pode piorar, avancem ou não essas ideias pouco viáveis.

A desconfiança irá evoluir em crescendo e o dólar ainda irá reduzir mais o seu espaço, o que, em todo este contexto, é deveras positivo para um maior equilíbrio internacional.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.