A ordem liberal internacional assenta na posição hegemónica dos EUA no sistema internacional. O declínio a que temos assistido na última década resulta da perda de poder relativo dos EUA. O fenómeno Trump, com réplicas na Europa e noutros locais do mundo, não é a causa do declínio da ordem liberal internacional ou da supremacia americana. É o resultado de uma tendência iniciada há cerca de duas décadas durante a Administração do Presidente George W. Bush. Esse declínio incontestado pela esmagadora maioria dos observadores, tem causado imensa turbulência no seio das elites políticas do outro lado do Atlântico (e deste também).

Essa elite reconhece o declínio, mas não sabe como o inverter. Não tem soluções. Insiste teimosamente nas fórmulas que conduziram à presente situação. O estado atual da ordem liberal internacional é o resultado das contradições intrínsecas do modelo liberal e da grande estratégia seguida pelas sucessivas Administrações americanas, independente da fação – Democrata ou Republicana – que se encontra no poder. Se, por um lado, a pandemia provocada pela Covid-19 aumentou a complexidade das soluções, por outro, tornou-se numa oportunidade geopolítica.

Após um arranque fulgurante e auspicioso no início dos anos 90, após o fim da Guerra Fria e o colapso da União Soviética, a ordem liberal internacional começou a perder gás nos anos 2000. A ilusão começou a desvanecer-se após o 11 de setembro com o prolongamento das “guerras sem fim” no Afeganistão (2001) e no Iraque (2003), e acentuou-se com a crise financeira de 2008. A grande potência mostrava-se incapaz de gerir e vencer as campanhas militares que promovia, e as narrativas que justificavam aquelas ações militares eram contraditórias.

Várias correntes de pensamento inspiraram a formulação ideológica em que assenta o conceito de ordem liberal internacional. Entre outras, três ideias-chave contribuíram para lhe dar corpo, inspiradas no pensamento liberal e construtivista das Relações Internacionais: a socialização, a interdependência económica e a teoria da paz democrática. É possível identificar vulnerabilidades e contradições nestas ideias, que do nosso ponto de vista se encontram na génese e explicam o declínio da ordem liberal internacional.

A primeira defende que a promoção de normas, particularmente normas democráticas, pelas organizações internacionais é transmitida para o quadro interno dos Estados que as compõem, impelindo-os a adaptar-se e a mudarem as suas políticas internas. Com base nesta “convicção”, a inclusão de potências iliberais – Rússia e China – nas instituições da ordem ocidental levaria a que estas adotassem normas democráticas e se transformassem em democracias liberais. Os defensores do projeto liberal acreditaram piamente que ao incorporarem a Rússia e a China nas instituições económicas do sistema ocidental (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, Organização Mundial do Comércio, etc.) estas não só se tornariam democracias liberais, como iriam acomodar-se numa ordem dominada económica, militar e politicamente pelos EUA, sem regatear essa liderança, nem pugnar por uma distribuição mais equitativa do poder nessa ordem.

A narrativa justificativa da expansão da NATO e da União Europeia para leste baseava-se em premissas semelhantes. Era apresentada publicamente como um fator de promoção da paz e da estabilidade na região, de consolidação do Estado de Direito e da democracia, expurgada de qualquer cálculo geoestratégico. A Rússia iria esquecer o facto de ter sido invadida duas vezes em menos de um século e meio por potências ocidentais, e passaria a viver mais feliz e sem sobressalto com bases da NATO nas suas fronteiras. Por seu lado, a China iria esquecer as humilhações a que foi sujeita pelas potências ocidentais ao longo do século XIX. Os valores da democracia liberal sobrepor-se-iam a tudo, nomeadamente ao cálculo estratégico dos Estados.

Como era expectável para alguns (nos quais se incluiu o autor), a integração da Rússia e da China nas instituições da ordem ocidental não produziu as transformações políticas anunciadas. Não se transformaram em democracias liberais. O acesso facilitado das corporações ocidentais a mercados com mais de mil e quinhentos milhões de consumidores e baixos custos de produção, explicará de um modo mais convincente o convite feito a países politicamente iliberais, como a Rússia e a China, para integrarem a Organização Mundial do Comércio, do que a expetativa de estas se transformarem em democracias. O pragmatismo e os interesses económicos das multinacionais terão prevalecido sobre a transformação política dessas sociedades.

Não é possível estabelecer uma relação entre preocupações geoestratégicas dos Estados e regimes políticos. Não se pode inferir que as transformações políticas dos Estados os levarão, necessariamente, a modificar as suas preocupações geoestratégicas e a alterar o seu comportamento na cena internacional. Uma China democrática teria os mesmos ensejos e ambições que tem a China iliberal e autocrática. O facto de ser uma democracia não ofuscaria a rivalidade e a competição. É errado ver a política internacional como um confronto entre democracia e autoritarismo. Os Estados cooperam ou competem entre si, conforme os seus interesses coincidem ou não, independentemente do regime político.

A segunda ideia, sustém que uma economia internacional aberta, que maximize o comércio livre e promova a circulação do capital sem restrições, cria prosperidade. Não é bem assim. Por isso, os promotores da ideia não previram os impactos negativos da interdependência económica nas economias do mundo ocidental industrializado. O Ocidente, promotor da globalização, perdeu o seu controlo e, consequentemente, deixou de ser o principal beneficiário.

Enquanto nas economias emergentes a globalização tirou milhões de seres humanos da fome e da miséria, e foi responsável pela emergência de classes médias, no mundo desenvolvido a globalização trouxe problemas económicos graves que minaram a legitimidade da ordem liberal. Aí assistimos à perda de empregos, à estagnação ou mesmo declínio dos salários, e ao aumento das desigualdades, resultado do deslocamento das indústrias dos países desenvolvidos para locais com custos de produção mais baixos, agravadas pela automação e inteligência artificial.

As consequências nefastas da globalização fizeram-se sentir nos EUA de uma forma dolorosa. Ao mesmo tempo que aí se verificava (como no mundo ocidental, em particular na Europa) uma enorme concentração de riqueza (em 2016, 77,1% do total da riqueza dos EUA pertencia aos 10% mais ricos, e apenas 1,2% pertencia aos 50% mais pobres), e o aumento das desigualdades sociais. A classe média americana sofria um processo de “proletarização”, associado a três décadas de erosão do poder de compra. Importantes segmentos da base industrial americana perderam, em apenas uma década, cerca de um terço da força de trabalho. Em parte, devido às alterações tecnológicas, mas fundamentalmente devido à competição da China e de outros concorrentes asiáticos. Estes desenvolvimentos tiverem enormes consequências sociais e políticas. A eleição de Trump foi um resultado disso. Ele representava para muitos americanos a esperança, a possibilidade de reverter esta situação.

As grandes multinacionais devem lealdade aos acionistas, e não aos Estados. Não estão particularmente preocupadas com as consequências sociais criadas pela deslocalização da produção, e, por isso, não são sensíveis a apelos patrióticos. A crise económica e financeira de 2008 causada pela ação desregulada do capital financeiro, igualmente uma consequência da globalização, cujo impacto foi mais significativo nas economias do Ocidente do que nas do Oriente, veio agravar as condições de vida das populações e cravar mais um prego na legitimidade dos sistemas políticos ocidentais. Devendo supostamente funcionar nos termos de uma “rules-basedorder”, o capital financeiro funciona numa roda livre difícil de escrutinar. A ambiguidade sobre o papel regulador que os Estados podem e devem ter, abriu as portas à desregulação e à ausência de controlo do sistema financeiro. Como se isso não bastasse, a globalização foi o veículo que facilitou e promoveu a rápida ascensão da China, capacitando-a para desafiar a unipolaridade.

A terceira ideia-chave consiste na crença de que a paz mundial se obtém através da criação de uma comunidade de democracias liberais. A materialização desta ideia através da imposição da democracia a todo o custo, mesmo que se tenha de recorrer à ponta das baionetas, independentemente das consequências (destruição de economias e do seu tecido social, sofrimento humano, vagas de refugiados, etc.) foi abraçada tanto por neoconservadores de direita como por liberais intervencionistas de “esquerda”, apenas com minudentes divergências.

O resultado desta obsessão messiânica foi desastroso. A sanha da transformação democrática no Afeganistão, Iraque, Síria, e Líbia abraçada tanto pela Administração Bush como pela Obama não fundou democracias liberais, foi responsável pela criação do Estado Islâmico e produziu uma imensa onda de refugiados que se dirigiu para a Europa. Esta obsessão alimentou a trama montada por Bin Laden. Isto é, atolar os EUA em guerras assimétricas no Afeganistão e no Iraque, e noutros sítios se possível, quantos mais melhor, expandir a confrontação com os EUA, enfraquecendo-os com guerras de atrição prolongadas.

Contrariando as aspirações hegemónicas dos EUA, outros protagonistas reclamam uma distribuição de poder diferente na ordem internacional. Reclamam uma nova voz e a consideração dos seus interesses nacionais, sem, no entanto, a quererem pôr em causa. A China está contente com a ordem existente, e não vê necessidade de se introduzirem transformações radicais. Interessa-lhe apenas pequenos ajustamentos que a possam aperfeiçoar. Falamos de reforma e não de substituição. Não está nos seus planos construir uma nova ordem.

Isso ficou claro na reunião do Fórum Económico Mundial, em 2017, onde o Presidente Xi defendeu o aprofundamento da globalização e a continuidade da ordem existente. Para a China, a ordem ideal deverá permitir conjugar liberalismo económico (globalização financeira e económica) com iliberalismo político. O primeiro não tem necessariamente de ser acompanhado pelo segundo. A China olha para esta ordem numa perspetiva pós-Vestefaliana, de rejeição do intervencionismo e de mudanças de regime.

É neste quadro geostratégico de declínio da hegemonia americana e da ordem liberal internacional que surge Trump a explorar o sentimento de insatisfação e de revolta existentes em importantes segmentos da sociedade americana, que se consideram menosprezados pela globalização. Trump recorreu a um discurso de outsider antissistema sugerindo soluções que, segundo os seus acólitos, permitirão salvaguardar o sistema e a supremacia americana num momento histórico menos favorável.

Como os seus antecessores, o objetivo último de Trump também é a hegemonia global, mas apostando na competição geoestratégica com a China e a Rússia, pugnando pela superioridade tecnológica, económica e militar. Estão por determinar as consequências que as suas políticas protecionistas terão no regime de comércio internacional vigente, na reconfiguração da economia mundial e, em última análise, no modo como afetará o papel dos EUA no mundo. Está por avaliar a bondade e eficácia dessas soluções. Apesar de ser prematuro tirar conclusões sobre os efeitos da pandemia na grande estratégia de Trump, algumas consequências são agora discerníveis. Veio acelerar acontecimentos que já se encontravam em curso, como sejam o aumento do protecionismo, e a rejeição da globalização neoliberal e dos mecanismos multilaterais a favor do Estado Nação. O futuro da ordem liberal internacional continua no fio da navalha.