O presidente Donald Trump tem sido muito justamente acusado de desprezar o multilateralismo. Evidências não faltam: a retirada dos EUA do acordo de Paris assinado em 2015, sobre as medidas para mitigar os efeitos das alterações climáticas; o abandono das negociações da Parceria Transpacífico, mais conhecida por TTP; a redução das contribuições para a ONU, colocando em causa o funcionamento de algumas missões de paz e de Agências, Programas e Fundos da Organização, como, por exemplo, a UNICEF. Poderíamos ilustrar o desinteresse de Trump com o multilateralismo recorrendo a muitos outros exemplos.
As acusações têm sido acompanhadas de imenso ruído. Convém, no entanto, salientar que este modus operandi não é novo nem exclusivo da Administração Trump. Outras administrações mostraram desinteresse pelo multilateralismo quando que este se tornava um empecilho para atingirem os seus objetivos. Isso aconteceu quando se tratava sobretudo de recorrer ao uso da força.
O multilateralismo prevaleceu nos ataques ao Iraque, em 1991, e ao Afeganistão, em 2001. Mas não se aplicou no bombardeamento da Federação Jugoslava, em 1999, na invasão do Iraque, em 2003, e aplicou-se de uma forma enviesada no ataque à Líbia, que levou à queda do presidente Kadhafi, em 2011. O primeiro e o terceiro caso correspondem a Administrações Democratas (Bill Clinton e Barack Obama) e o segundo a uma Administração Republicana (George W. Bush). Muitos dos que hoje estendem o dedo acusatório a Trump têm também contas a acertar com a história.
O ataque à Federação Jugoslava decretado pelo presidente Bill Clinton (embora realizado no quadro da NATO) foi levada a cabo sem autorização do Conselho de Segurança da ONU, uma vez que a China e a Rússia indicaram que vetariam a proposta. O pretexto foi a necessidade de resolver uma intervenção humanitária, corroborada por media obedientes. O resultado foi a construção de uma entidade disfuncional.
Os EUA adquiriram terrenos no Kosovo e construíram a maior base americana na Europa, que permite albergar até 20.000 militares. Deste modo, podem ligar os teatros de operações do Mediterrâneo e do Médio-Oriente. Não podemos esquecer o papel do Reino Unido nesta aventura. Para além da subordinação aos interesses norte-americanos, o Reino Unido tinha a sua própria agenda, cujo objetivo último era utilizar o Kosovo para dividir e criar tensões entre os Estados europeus, e assim cravar mais um prego no caixão da União Europeia.
A invasão do Iraque em 2003 foi igualmente realizada sem autorização do Conselho de Segurança, configurando o crime de agressão. As consequências foram atrozes. Provocou centenas de milhar de mortos, foi responsável pelo surgimento do Estado Islâmico, e criou as condições para o presente pesadelo na Síria.
A operação militar iniciada pela França e Reino Unido, e depois continuada sob comando e controlo da NATO, foi vivamente apoiada e encorajada desde o seu começo pela Secretária de Estado Hillary Clinton. Também aqui o problema humanitário foi pretexto. A operação apoiava-se numa Resolução do Conselho de Segurança, mas uma interpretação muito elástica da mesma levou a que a força fosse usada de um modo não previsto, culminando numa operação de mudança de regime, o que levantou discordâncias da Rússia e da China. O resultado é conhecido. A vaga emigratória que explica em parte o ascenso da extrema-direita no espaço da União Europeia.
Não se pretende neste artigo fazer a apologia das políticas de Trump, ou mitigar os seus contornos nefastos. Nada disso. Deseja-se tão-somente recentrar o debate, libertarmo-nos de narrativas maniqueístas prenhes de ética, mas que não ajudam a compreender os acontecimentos, servindo apenas para moldar espíritos e condicionar a capacidade de análise.