É com uma certa desolação que ouvi o lamento de José Pacheco Pereira sobre a sua experiência de encontro com milhares de estudantes do ensino secundário ao longo de um ano de visitas a escolas. (https://www.publico.pt/2024/11/30/opiniao/opiniao/perda-duas-culturas-2113932).
Queixa-se da “perda acentuada das duas fontes fundamentais da cultura ocidental”, a que chama “a nossa cultura”, “dois pilares culturais e históricos: a cultura greco-latina e a cultura bíblica”. E a esta perda associa o obscurantismo e outros motivos de apreensão desta época, como a aceleração do tempo social ou o policiamento da linguagem. Tudo isto parece-me confuso e infeliz.
Infeliz porque fica um julgamento apesar da generosidade dos encontros, confuso porque o que se lê revela sobretudo uma grande incompreensão. Pacheco Pereira pode não ter ouvido da boca dos estudantes tantas vezes quanto gostaria que liam a Bíblia ou a Odisseia, mas talvez devesse ter sido mais curioso e continuado a fazer-lhes perguntas, assim como quem conversa. Por exemplo: “Então o que lêem vocês?” E ouvi-los mais. É que, contrariamente à percepção que partilha, há estudos que indicam que o mercado livreiro em Portugal tem tido uma evolução positiva nos últimos anos, impulsionada sobretudo pelas gerações mais jovens e, curiosamente, muito assente em livros impressos (https://expresso.pt/cultura/Livros/2023-08-31-Os-portugueses-estao-a-ler-mais-e-isso-deve-se-aos-jovens-sao-eles-quem-mais-compra-livros-em-Portugal-958dcebf).
Decerto, nada é brilhante nesta matéria dos hábitos nacionais de leitura, mas há todo um contexto. Não se ler é neste país um problema bem antigo, com mais barbas do que qualquer um de nós. E é dessa aridez histórica que, apesar de tudo, os mais novos vão fazendo alguns hábitos de leitura. Se não responderam que liam a Bíblia ou clássicos gregos e romanos, a pergunta seguinte seria o que lêem então e, assim, ir tentando conhecer esses novos universos culturais, desejavelmente também “nossos”.
E o que pode hoje significar isso de algo ser “nosso”, seja a cultura bíblica por exemplo? Eu sou da geração X, um par de décadas mais velho do que as gerações Z e alfa, não li a Bíblia em miúdo, nem sequer era leitura recomendável na casa muito culturalmente ocidental em que fui criado. Mas esse é um aparte. O que me importa sublinhar é que, com o meu mais de meio século de vida, ainda me lembro da chegada da televisão a cores, dos primeiros PC, dos primeiros telemóveis e dos primeiros acessos à internet, dos primeiros correios electrónicos a chegarem a qualquer outra parte do mundo no instante seguinte, portanto, ainda me lembro do como tudo era antes. Antes do quê ao certo? De um mundo de relações cada vez mais atravessadas por uma cultura global e multimedializada.
Para quem nasceu nesta nova realidade, “nosso” dificilmente pode ter menos escala do que a do planeta inteiro. E a medialização cultural dificilmente se condiciona por um meio tão hegemónico como, no passado, foi a leitura de literatura ou como, mais recentemente, ainda tentou ser a televisão. Aos jovens estudantes, era de Pacheco Pereira lhes ter perguntado, não só o que lêem, mas também – e especialmente aos que não lêem muito – como fazem, o que devoram, para nutrir os seus anseios, vontades de participação, de fazer coisas, tornar o seu tempo tempo seu?
Num mundo que já não pode ser menos do que o planeta inteiro, a leitura da Bíblia como a da Odisseia não deixam de ser recomendáveis, naturalmente. Só deixam de ser fundamentalmente mais canónicas do que o Corão, a poesia japonesa, as miríades de formas de canto tradicional africano, ou as recolhas de literatura oral indígena, enfim, todas as fontes de sentido que floresceram neste “nosso” planeta já não mais concebido de forma não inteira. Nada mais nos é estranho, seja qual for a distância cultural ou outra donde venha, e a ninguém, por mais remota que seja a sua distância, somos estranhos. A novidade é que a identidade passou a ser planetária, sendo essa, aliás, a crítica principal a dirigir aos identitarismos. Numa cultura planetária, de comunidade única e cada vez mais ampla, o identitarismo ou é musealização ou é negacionismo. O segundo é pior, mas ambos não estão a compreender a nossa época.
O mesmo vale com o passado. É claro que Tolstoi e Eça são muitíssimo compreensíveis sem que se tenha lido a Bíblia antes. Como a Guerra dos Tronos sem se ler a Ilíada e a Odisseia! Mas, curiosamente, pode bem a leitura da Bíblia reverberar sobretudo a partir dos séculos de literatura que a sucederam. O tempo de sentido tem muito pouco de linear. “Tudo em todo o lugar ao mesmo tempo”, como o título de um filme célebre, é uma boa síntese para uma nova semântica do que queremos dizer quando dizemos “nossa cultura”. É mais complexo, mas também mais simples.
É certo que as humanidades vivem, desde há muito, uma crise, mas, ironicamente, é com um pouco da medida das ciências que facilmente se constata que a causa da sua crise tem pouco ou nada de geracional. Na verdade, as novas gerações estão a dar o corpo e o espírito às mais extraordinárias transições culturais, apesar dos riscos existenciais que as gerações mais velhas as têm exposto.
A medida rigorosa é a maneira das ciências escutarem. Em vez de antecipar, interpretar a natureza, dizia Francis Bacon no Novum Organum. A escuta é a maneira das humanidades, na verdade cada pessoa no uso dos seus poderes de linguagem, de medirem a realidade humana do seu tempo.
E há sem dúvida um problema seríssimo na aceleração do tempo social. Promove a destituição do pensar pelo reagir, desequilibra a relação entre pathos, logos e ethos (emoção, razão e carácter), torna a diferença entre verdade e falsidade do que se afirma e a diferença entre validade e invalidade do que se argumenta pouco consequente, mergulha-nos no risco distópico da pós-verdade e do obscurantismo, em suma, deixa-nos sem condições de escutar. Mas daí a ver na perda de hábitos de leitura (facto já de si discutível) dos clássicos e da Bíblia uma causa destes malefícios, ou na retoma dessas leituras uma salvação, apetece dizer, sim, claro, nem que seja para identificar nelas os valores e a visão de mundo que participaram da criação dos sinais distópicos que vão sendo sinalizados. Não se resolve a falta de escuta com uma lista de leituras identitárias, muito menos compulsórias.
A multiculturalidade não é uma ilusão. É a realidade do “nosso” mundo planetário cada vez mais intervivente, e também, na escala adequada, do “nosso” país, e dos países dos “outros”, sobretudo se em liberdade de movimentos e habitado pela hospitalidade. Na cultura planetária e multimedializada da nossa época, o que podemos desejar-nos e prometermos de bom é uma ecologia de saberes e das suas formas de expressão, uma diversidade ligada de passados e presentes, de fontes de sentido e de imaginários. Esse é, aliás, o programa que importa promover em currículos escolares demasiado disciplinados e desfasados das necessidades dos tempos que vivemos quando, por exemplo, ensinam a história de Portugal como se a história não passasse por ela. Os filhos das comunidades migrantes precisariam que fosse oferecida muito mais ligação entre o que aprendem e o que vivem. Nas aulas de história, de língua e literatura, de geografia. E os filhos, em geral. Muitos deles já sabem. É só perguntar mais.