A queda do Muro de Berlim e a dissolução da União Soviética alimentaram o sonho liberal de integração económica e simplificação de relações comerciais, que generalizaria a prosperidade e perpetuaria a paz. Ninguém terá hoje dúvidas que tanto a nível regional como global, esse sonho, em que assentavam os fundamentos essenciais da ordem internacional vigente, está posto em causa, e que o Mundo que sair desta crise será diferente.
Esperávamos que a Rússia, com um território imenso recheado de recursos naturais, com uma cultura fortíssima e uma população a habituar-se a novos hábitos de consumo e conforto material, se sentisse motivada a participar activa e construtivamente numa comunidade internacional cooperativa e não-confrontacional.
De repente, demo-nos conta que a Rússia moderna é um prolongamento da Rússia imperial, que mantém as ambições expansionistas que gerou a partir do século XVI para responder à insegurança histórica de não ter fronteiras naturais definidas que a protejam, e o desejo de ter uma saída marítima que facilite o intercâmbio comercial.
Foram essas as linhas de força da política externa Russa desde o Ivan, o Terrível, que o regime soviético na prática nunca abandonou e, aliás, tentou até desenvolver, numa visão de um Mundo dividido em dois grandes blocos que se opunham e que disputavam o apoio dos não-alinhados.
A Europa, que por um misto de razões pragmáticas fundadas e constatações geográficas, tinha deixado criar uma dependência da Rússia sobretudo em produtos energéticos, percebeu que não é do seu interesse que a Rússia ocupe a Ucrânia, pois tal seria um mero passo na concretização das ditas ambições.
Assim, a União Europeia apoiou a Ucrânia fornecendo armamento e meios financeiros e, sem participar directamente na guerra e agindo com cuidado para não causar danos aos países europeus que não tivessem alternativas facilmente operacionalizáveis para se abastecerem de produtos essenciais, adoptou sanções à Rússia para reduzir a sua capacidade financeira e tecnológica e aumentar o custo e a dificuldade das operações militares.
Os EUA, que tinham uma visão diferente da postura da Rússia e desde há anos criticavam a Europa por não reconhecer o perigo da dependência económica, igualmente apoiaram a Ucrânia, para combater o perigo que a Rússia passou a constituir para o “Ocidente” – que foi reconhecido como suficientemente real para justificar que a Suécia e a Finlândia abandonassem a sua neutralidade histórica e solicitassem a adesão à NATO.
Contudo, o apoio à Ucrânia tem uma natureza defensiva, visando a manutenção da independência e integridade territoriais do país, vítima de uma agressão militar injustificada, mas sem pretender uma derrota humilhante para a Rússia.
Apesar de a ONU ter considerado que a invasão constitui uma violação do Direito Internacional, noutras regiões, a guerra na Ucrânia é vista como um conflito regional, que não justifica a adopção de medidas. E certos países, como o Irão, vêem-na como um episódio num confronto estratégico contra os interesses americanos, que justifica um apoio à Rússia.
Alguns países relevantes, como a China e a Índia, vêem aqui uma oportunidade para promover uma alteração da Ordem Mundial vigente, concentrada num pequeno grupo de nações, algumas das quais já sem a relevância que em tempos tiveram. Por isso, têm criticado a agressão militar sem daí extrair outras consequências.
É a tentativa de criação de uma Ordem Multipolar, em que se reconhece que a Rússia tem relevância devido à sua dimensão por ser uma potência nuclear, mas que é apenas mais um entre vários, e de ter maior peso nos fora onde se decidem os temas fundamentais de desenvolvimento e segurança à escala global.
O resultado deste jogo não é imediatamente previsível, mas será certamente interessante, e implicará um realinhamento que irá resultar do reajustamento dos circuitos comerciais, do desenvolvimento da transição energética e das medidas de combate à inflação resultante da guerra.
Esse realinhamento já está a ser pensado e preparado, e os Estados Unidos, com o Inflation Reduction Act (IRA), estão a posicionar-se para assumir uma posição de liderança na produção industrial, sobretudo de produtos de maior elevado valor acrescentado, invertendo a tendência das últimas décadas. Estão assim a criar condições excepcionalmente atractivas para o investimento na reindustrialização, que incentivarão a deslocalização de empresas de outras regiões.
A Europa, que definiu um conjunto de objectivos de sustentabilidade ambiental e social válidos, relevantes e eminentemente desejáveis, poderá ser a principal prejudicada, porque condiciona a execução dos seus programas de incentivos pela complexidade regulatória e por estímulos negativos, do tipo proibições ou sanções.
Já a implementação do IRA assenta na facilitação da concessão de financiamentos ou licenciamentos e benefícios fiscais e económicos muito relevantes, o que atrai os investidores. Ora, teremos de rapidamente resolver esta complexa equação. É o futuro da Europa, como projecto e como realidade que nos pode garantir a paz, que está em causa.
Entretanto, por cá, em vez de se discutir que futuro queremos para o país, e que modelo de sociedade devemos construir, continuamos entretidos a discutir os “casos e casinhos”…
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.