Ainda em estado de choque com o efeito Trump e a sua tendência egocêntrica e autoritária, a resposta tarda. O repentismo do novo presidente vai ter efeitos graves sobre o país e o sistema internacional. Mas a resistência só pode vir das forças internas, que inspiram pouca esperança. Não nos equivoquemos com a dimensão da marcha anti-Trump a seguir à sua investidura. Não há uma federação de causas e de movimentos, nem um braço político que lhe dê expressão. E os media estão capturados no fascínio pelo fenómeno.
Os democratas, que tanto trabalharam para eliminar Sanders, estão em minoria nas duas câmaras do Congresso, na liderança dos estados e nas legislaturas estaduais. Cedo ou tarde, em algum ponto, vão cooperar. A bem do interesse nacional, claro, sobretudo numa situação de tensão externa. Os testes ao seu apego à defesa dos direitos humanos e das liberdades civis foram negativos. Por exemplo, Mike Pompeo, conhecido islamofóbico e defensor da tortura, tornou-se director da CIA com apoio de senadores democratas.
A divisão interna e a limitação ao combate institucional são claras. Daí não sairão vitoriosos. Sem uma análise das suas responsabilidades no desastre Trump e sem a religação aos movimentos sociais, os liberais correm o risco de se tornar peça sem uso. O sistema eleitoral está definido de um modo que bloqueia o espaço a novos partidos e permite o exercício do poder a partir de uma minoria dos votos, desde que concentrada. E isso não vai alterar-se tão cedo.
Trump é um exímio flautista de Hamelin. A imprensa-espectáculo, horrorizada com a naturalização da mentira, sente-se atraída pelo grotesco. É bom demais para não transmitir. Das primárias à presidência, Trump oferece aos media a dose diária que ela tanto necessita para manter a nossa atenção cativa. Bombardeados com “factos alternativos” e desmentidos, ficaremos enojados e anestesiados; em breve desligamos. A naturalização ficará completa.
No meio do barulho, como coisa normal, Trump desencadeou uma guerra comercial com a China. Como todas as potências cujo domínio começa a definhar, a América enfrenta o seu momento de pânico. Trump sinaliza a vitória da abordagem agressiva contra a potência em ascensão. Mas a sua táctica destemperada vai reforçar os propósitos dos seus adversários.
A presidência Obama reconhecera o ocaso da supremacia dos Estados Unidos como potência unipolar. No mundo complexo actual, é impossível manter o controlo sobre os territórios a grande distância – excepto se houver disposição para uma guerra de grandes proporções. A invasão da Crimeia tornou-o evidente. Obama não ripostou com mísseis; preferiu arruinar a economia russa dependente das exportações de petróleo e de gás natural, inundando o mercado com a sua própria produção.
Foi na Ásia que também o anterior presidente focou a atenção. O sistema de segurança na região está centrado na rede de alianças bilaterais dos Estados Unidos com os países asiáticos. O cordão de segurança a leste e a sul da China foi testado pela táctica chinesa de avanços pequenos na sua afirmação regional, tomando espaço, ilha a ilha, no controlo dos mares. Obama intensificou o patrulhamento, usando a superioridade da sua marinha. Mas definir o ponto de ruptura numa táctica de confronto lento é muito difícil. O espaço é de importância vital para a segurança chinesa, mas não o é para a sobrevivência americana.
Obama percebeu que a ascensão chinesa era uma inevitabilidade e que a sua estratégia não poderia ser apenas político-militar. Na proximidade da “fábrica do mundo”, capitalizada e capaz de intervir no apoio ao desenvolvimento e na cooperação económica, é inevitável que esses países viessem a integrar um eventual bloco pró-chinês. Se os americanos queriam manter alguma relevância e rivalizar na região no plano político-militar, precisavam de um braço económico.
O TTP, apesar de todas as críticas válidas que merece, era o instrumento de contenção da China. O acordo comercial cobria o Pacífico, mas deixava a potência emergente de fora. O receio da assertividade militar chinesa e a ideia de uma integração económica com a superpotência empurrou a região para os braços americanos. O sucesso da iniciativa foi grande e até o Vietname, que também tem interesses ameaçados no mar do sul da China, celebrou acordos de cooperação com os Estados Unidos.
Trump quer um embate de frente com o gigante chinês, dispensando a rede de alianças baseada na confiança mútua. Mas alienando parceiros, sendo um líder pouco fiável, a América acabará por consolidar um bloco novo na região. As exigências chinesas podem sempre ser acomodadas em troca de outras vantagens. O novo presidente está iludido pela grandeza do arsenal americano e acabará por acelerar o fim da sua hegemonia na região.
O anúncio de Trump-candidato de que cada um deveria tratar da sua própria defesa e a ruptura unilateral de Trump-presidente com o TTP, sem criar outro mecanismo de integração económica, desestabilizaram a região e ofereceram-na de presente à China. O Vietname já fez um encontro com a potência regional para emendar a mão. As Filipinas e a Malásia reforçam aproximações. E as instituições financeiras alternativas ao FMI e ao Banco Mundial que os chineses criaram exercem cada vez mais atracção.
Num contexto autoritário, é frequente as elites protegerem os seus interesses, passando os danos para os outros grupos sociais e envolvendo-os em confrontos. Mas uma guerra entre estas potências, sobretudo se uma sentir a sua segurança ameaçada, não pode correr bem. É por isso que uma frente unida interna na limitação ao poder de Trump seria tão importante. Caso contrário, estaremos todos entregues nas mãos de um bully com o dedo no botão.
O autor escreve segundo a antiga ortografia.