Apesar de a lei das barrigas de aluguer ‒ vetada pelo Presidente na sua primeira versão ‒ ter sido recentemente desfeita pelo Tribunal Constitucional, e de já ter sido noticiado o veto político de Marcelo à lei da mudança de género, a agenda da revolução dos costumes não dá sinais de abrandamento.

Em especial, são já conhecidos alguns projetos legislativos relativos à eutanásia, que é por certo o mais fraturante de todos os temas fraturantes e que, na legislatura em curso, ainda não tinha sido objeto de iniciativas dos deputados. Outros projetos estão já anunciados, mas ainda não formalmente apresentados.

O primeiro projeto de lei sobre eutanásia a ser submetido ao parecer do Conselho de Ética para as Ciências da Vida quase conseguiu unanimidade: 19 votos contra e um voto a favor. E basta ler o texto do parecer deste Conselho para perceber que os outros projetos legislativos que lá forem parar a seguir vão ter, embora porventura por uma maioria menos expressiva, um destino semelhante.

Das várias afirmações constantes do dito parecer, destaca-se uma: “não é eticamente aceitável legislar sobre procedimentos (de eutanásia) sem assegurar, ao mesmo tempo, uma oferta de cuidados organizados em fim de vida aos quais todos os cidadãos possam recorrer se assim o desejarem”. Dito de outra forma: o Estado não pode colocar os seus cidadãos em fim de vida perante o dilema de continuar a viver num sofrimento agonizante ou recorrer à eutanásia.

Um Estado de Direito, baseado na dignidade da pessoa humana, que declara a vida humana como um direito inviolável, e que tem a obrigação de garantir aos seus cidadãos acesso universal aos cuidados de saúde, não pode ter apenas a eutanásia para oferecer aos seus doentes terminais e em sofrimento profundo.

Mas, em concreto, o que está em causa nestes projetos legislativos? Três coisas. Antes de mais, estamos a falar de eutanásia ativa (matar, e não apenas deixar morrer), direta (encurtar a vida de forma deliberada, e não apenas como consequência da aplicação de substâncias lenitivas) e voluntária (uma vez que o doente tem de estar consciente e capaz de exprimir a sua vontade livremente).

Em segundo lugar, cria-se no Serviço Nacional de Saúde – e certamente também em unidades privadas de saúde – um procedimento administrativo destinado a que certos doentes, portadores de lesão ou doença incurável e fatal e em sofrimento duradouro e insuportável, possam voluntariamente pedir a um médico à sua escolha para que lhes seja tirada a vida ou então para serem ajudados a suicidar-se. Trata-se, no fundo, do desenvolvimento de uma nova valência hospitalar destinada a pôr fim à vida dos doentes que, em função do seu estado clínico, o requeiram.

A terceira coisa que resulta destes projetos é, naturalmente, a descriminalização das condutas previstas no Código Penal de “homicídio a pedido da vítima” e de “ajuda ao suicídio”, quando praticadas por médicos em conformidade com o referido procedimento. Se os diferentes passos do procedimento forem cumpridos, um por um, mormente no que se refere à confirmação da vontade do paciente, os médicos intervenientes nada terão a recear da Justiça. Fora desses casos, a criminalização mantém-se.

O principal argumento usado em defesa da eutanásia é a autodeterminação individual: estando o doente consciente e capaz de decidir livremente, porque não reconhecer-lhe a possibilidade de partir mais cedo?

Por uma razão simples. Porque ‒ mesmo admitindo que nas circunstâncias em causa é possível tomar uma decisão livre e esclarecida ‒ só há verdadeira autodeterminação se o doente tiver, antes de mais, a possibilidade efetiva de escolher continuar a viver os seus últimos dias com dignidade. O Estado tem a obrigação de lhe oferecer uma alternativa eticamente válida à eutanásia. Mas, infelizmente, em Portugal a lei de bases dos cuidados paliativos, aprovada em 2012, salvo raras exceções, não passa de umas quantas páginas publicadas no Diário da República.

Que autodeterminação pode existir aí, onde a escolha é entre a dor agónica e a morte rápida?