O Processo Marquês configura, na minha opinião, um caso de estudo sobre o modo como a Justiça é administrada em Portugal.
Defendo que a Justiça é a principal e mais digna função do Estado. Numa descrição algo simplista e redutora a Justiça é um sistema de resolução de conflitos que se desenrolam nas sociedades humanas em termos que devem garantir a liberdade, a paz, e as condições de realização individual e colectiva dos cidadãos, sendo a própria razão de ser do Estado.
Segundo esta visão, procedente do Iluminismo e da Revolução Francesa, o Estado assume uma natureza de representação e coordenação da comunidade, assegurando através de órgãos especializados a elaboração das regras que devem ser cumpridas por todos (função legislativa, que pertence aos parlamentos), a garantia da sua administração e aplicação (função executiva, que pertence aos Governos e às Administrações Públicas, incluindo as polícias), e o julgamento e sancionamento dos eventuais incumprimentos (função judicial, que pertence aos Tribunais).
A Justiça necessita que os órgãos que acima mencionei funcionem de modo independente e respeitando as competências uns dos outros, num sistema de separação de poderes que garanta que nenhum desses órgãos exerce funções que pertencem a outros, e que todos respeitem o princípio fundamental de que a sua actividade visa, repito, a liberdade, a paz, e as condições de realização individual e colectiva dos cidadãos.
É por isso que ninguém pode ser objecto de investigações sem que exista uma causa provável que a justifique; que a investigação seja da competência de órgãos policiais especializados, com sujeição a supervisão judicial para garantir que não são violados os direitos fundamentais dos particulares; que qualquer pessoa suspeita da prática de crimes deve conhecer rapidamente o teor da acusação que lhe é dirigida, sendo para todos os efeitos inocente até que seja definitivamente condenada; que tem direito a defender-se através do contraditório e do recurso das decisões que sejam proferidas.
E, acima de tudo, que o processo decorra conforme as regras e dentro de prazos que evitem a produção de efeitos negativos, designadamente da excessiva mediatização que crie na opinião pública uma convicção de culpa do agente.
Ora, o julgamento do Processo Marquês inicia-se 11 anos após a detenção (pública e amplamente publicitada) do principal acusado; levou à elaboração de um mega processo, com centenas de volumes e dezenas de milhares de páginas, que criou e tentou fundamentar uma acusação complexa. Passou por 4 anos de investigação até à formulação da acusação, 2 anos de debate instrutório, um ano e meio para a prolação da decisão instrutória, e mais cerca de 3 anos gastos em recursos sucessivos. Tudo com ampla veiculação para a comunicação social e as redes sociais, resultando na criação de um clima favorável a uma condenação pública.
Tudo isto foi errado, e exige uma alteração profunda. O mesmo efeito prático teria sido obtido com muito menos matéria, concentrando a acusação e fundamentação num número reduzido de factos, simplificando os procedimentos intermédios, e chegando a um julgamento em data muito anterior. Ter-se-ia evitado a excessiva mediatização do processo e o risco de um julgamento popular. E ter-se-ia conseguido preservar a imagem de independência e autonomia do Ministério Público e evitar receios de judicialização da política, pelo menos tão indesejável como a politização da Justiça.