Vários princípios definem a democracia. Um homem, um voto, por exemplo. De todos, o mais sagrado. O douto vale o mesmo que o ignorante, o negro vota como o branco, o velho não é mais sábio que o jovem, todos nivelados na igualdade da condição humana. Desta simples frase decorrem muitas outras que sustentam a democracia. A igualdade perante a lei, por exemplo. Ou a igualdade de género. E quando, por imperfeições inerentes à nossa própria condição humana, se introduzem distorções e desigualdades na sociedade, a democracia esforça-se por as corrigir. Em matéria de distribuição de riqueza, por exemplo, inventou os impostos. Literalmente, tira aos ricos para dar aos pobres. Os políticos são sempre impelidos a tirar dos que estão por cima para dar aos que estão por baixo. Porquê? Porque “um homem, um voto”. E os que estão por baixo são mais numerosos.

Mas, se assim é, porque cresce a desigualdade extrema em quase todas as democracias ocidentais e no mundo em geral e ninguém liga?

Bom, talvez porque o sagrado princípio de “um homem, um voto” esteja hoje subvertido. Se calhar, há certos votos que valem por dez mil. Não nas urnas, é claro. Mas na influência que exercem diretamente sobre os eleitores. E sobre os decisores.

Comprar influência é prática corrente. Os ricos controlam jornais, televisões e a internet, lançam iniciativas de todo o género, fundações, think-tanks, acarinham publicações e projetos de investigação, enfim, dedicam dinheiro às suas causas preferidas. Porque estão libertos da luta quotidiana pela sobrevivência, interessam-se por elas e dedicam-lhes muito do seu tempo e recursos. Influenciam a decisão política muito mais que o cidadão comum através do voto. Segundo Lee Drutman (*), nos EUA, 30.000 indivíduos são responsáveis por 80% dos donativos a partidos políticos. Daqui o (admitidamente) exagerado título. Quem dá muito, procura e consegue o contacto com o legislador e influencia-o no que pretende.

Naturalmente, os ricos não estão muito preocupados com a desigualdade. Preocupam-se mais com causas que desestabilizam a ordem socioeconómica estabelecida onde eles florescem: o crime, a imigração ou, nos EUA, a desregulamentação dos mercados, por exemplo. Não raras vezes, são generosos e altruístas. Bill e Melinda Gates, por exemplo, fizeram e fazem mais por erradicar a malária que todos os governos africanos e a ONU juntos. Mas isso significa também que nenhuma organização governamental ou intergovernamental ousa iniciar um programa de saúde em África sem antes tentar concitar os favores da Fundação Gates. Quem manda nas opções tomadas não é o voto do cidadão, mas sim o poder financeiro da Fundação. É uma boa coisa, perante todos os fracassos anteriores. Mas tem consequências na democracia e no modo como ela funciona.

Chegámos, pois, ao fulcro da questão. A desigualdade extrema está a aumentar o poder de influência dos muito ricos sobre a agenda política. São conhecidos os exemplos dos irmãos Koch e do Partido Republicano. Gerhard Schroeder sucumbiu à influência russa da Gazprom, mas não sem antes determinar as opções energéticas da Alemanha. A política da UE, logo após a crise do subprime, teve como objetivo, salvar a banca em geral e a banca alemã em particular. E mesmo Obama vem agora afirmar que “os políticos se afastaram das pessoas comuns”. O mesmo que veio de jato privado e “secret service” ao Porto e logo saiu de regresso a Madrid, onde visitou museus acompanhado de Filipe VI. Eu diria que tem razão. De tanta elegância intelectual e tanta distância das “pessoas comuns” entregou o país nas mãos de Trump… (eu até simpatizo com o homem, mas “faz o que eu digo, não faças o que eu faço”).

Enfim, está na hora de nos perguntarmos se não necessitamos de restabelecer o equilíbrio democrático tão singelamente definido na frase “um homem, um voto”. A história, de vez em quando, inventa umas revoluções e umas guerras para “pôr tudo ao nível”… Mas seria preferível não chegar aí. Estarmos conscientes do problema e alertar para ele é um primeiro passo. Aqui fica.

(*) Sugiro leitura da excelente coluna Free Exchange, no “The Economist” da passada semana)